Na primeira semana de março surgiu uma alegada tradução de um comentário da situação actual redigido por um suposto agente no activo do serviço de informações russo, o FSB. O texto surgiu num post no facebook e foi traduzido e publicado. Terá surgido pela primeira vez neste site mas não é possível confirmar esta informação embora a fonte seja geralmente considerado fiável. O texto em si mesmo será comentado, ponto a ponto, nas linhas seguintes, não contém nenhuma revelação extraordinária ou bombástica mas foi escrito por alguém que conhece muito bem os meandros do poder russo.

  1. O analista do FSB indica que o sentimento dominante de Putin e da sua entourage mais fiel é o de culpar o FSB pelos problemas que a invasão está a enfrentar. Isto é irónico porque o próprio Putin ascendeu nos degraus da burocracia russa dentro do KGB (a designação antiga do FSB) e em 1998 foi nomeado por Boris Yeltsin como o responsável máximo pelo FSB e, pouco depois, membro do influente “conselho de segurança” do presidente. Se alguém estaria em boas condições para detectar um relatório faltoso ou incompetente seria Putin. Mas não só não o fez como, segundo o alegado agente do FSB, não deu as condições necessárias para que o serviço pudesse trabalhar em condições, ocultando-lhe até ao último dia que a Rússia iria invadir a Ucrânia e multiplicando os pedidos de análise à situação que criaram o caos na análise da conjuntura.
  2. Putin não parece ter pedido ao FSB uma análise sobre a probabilidade de o Ocidente responder com sanções extensas e duradouras. Por isso é que a Rússia assiste agora a supermercados com prateleiras vazias, corridas aos bancos e a um aumento generalizado do preço dos produtos de consumo. Nada foi preparado para esta escalada de sanções e o FSB não produziu recomendações porque não sabia que a guerra iria ter lugar nem que, a ocorrer, seria à escala de toda a Ucrânia como está a ocorrer.
  3. O líder checheno Ramzan Kadyrov, líder da República russa da Chechénia, antigo membro do movimento de independência tornado agora em fantoche do regime de Putin, está à beira da ruptura com o governo russo porque recebeu informações dos serviços de informação ucranianos de que foi o FSB que lhes disse onde é que estaria a coluna chechena que foi destruída pelos ucranianos antes de chegar à linha de frente. É impossível saber se isto aconteceu exactamente assim mas a qualidade destes combatentes chechenos parece muito reduzida, já que a Rússia estava a contar usá-los não como “tropas de choque” (como alega a propaganda oficial) mas como agentes de intimidação e repressão da população civil nas zonas urbanas recentemente conquistadas.
  4. O analista russo admite que os planos iniciais da invasão falharam em toda a linha. A ideia era capturar o presidente ucraniano, juntamente com o seu governo, nos primeiros três dias da “operação especial”, obrigá-lo a uma declaração pública que levasse à rendição da Ucrânia e que a resistência do exército invadido deixasse de existir durante a primeira semana da invasão.
  5. Como sucedeu com os americanos no Iraque depois da derrota de Saddam, não se pensou devidamente no pós-guerra: mesmo se os russos tivessem conseguido demitir Zelensky nos primeiros dias de conflito, quem seria o interlocutor válido para as negociações com a Rússia? Mesmo um partido ucraniano pró-russo, como o ОПЗЖ, não se tem mostrado disponível a colaborar com os invasores e o antigo presidente ucraniano pró-russo Yanukovich é muito impopular na Ucrânia e agora mais do que nunca. Se não seria possível instalar um governo fantoche, a Rússia teria de recuar, de volta para as suas fronteiras, ou ocupar o território. Mas falamos de um país de 55 milhões de habitantes (mesmo que se estimem agora 10 milhões de refugiados), geograficamente muito extenso e com grandes cidades (Kyibv tem 2.6 milhões, Kharkiv 1.4, Odessa um milhão, assim como Dnipro e Donetsk, e outros 10 milhões vivem nas restantes seis maiores cidades). A Rússia não tem, simplesmente, os meios humanos para uma tal ocupação. Teria de recrutar um extenso grupo de colaboradores, de os encontrar, pagar, treinar e equipar. Um país como a Ucrânia precisaria de, estima o analista, pelo menos 500 mil ocupantes e isto assumindo que o nível de contra-insurgência fosse muito baixo, o que não confere minimamente com o nível de resistência que os ucranianos estão agora a apresentar. Por outro lado, como seria a Rússia capaz de manter logisticamente este extenso exército de ocupação se, actualmente, já abandona colunas e centenas de veículos porque não os consegue manter e fornecer combustível?
  6. A Rússia poderia decretar a mobilização geral, transferir mais unidades do extremo oriente e de países “amigos” e aumentar a quantidade de forças no terreno na esperança de que isso pudesse levar ao colapso da resistência ucraniana. De certa forma isso já está a acontecer com a aparição no leste da frente de unidades blindadas com a pintura das unidades siberianas e com as notícias do envio de “voluntários” (mercenários sírios e do “grupo Wagner”) mas uma mobilização geral iria destruir o mito de uma “operação especial” rápida e muito localizada e fazer aumentar o nível de descontentamento de uma população já muito martirizada pelas sanções e pelo colapso das importações que são essenciais para muitos bens de consumo num país cuja economia está muito dependente da produção de hidrocarbonetos. Uma mobilização geral iria aumentar a dificuldade em manter o exército na Ucrânia e criaria ainda mais problemas nas vias de comunicação, expondo-as a ataques e criando ainda mais dificuldades na linha de frente.
  7. Quanto às baixas russas o próprio alegado analista do FSB admite não conhecer o número verdadeiro mas reconhece que em algumas divisões as perdas são extensas e que os números totais (com mortos e feridos) podem estar entre os 2 e os 10 mil, sendo o último número o mais provável (10% é, em muitas unidades de combate, considerado pelos analistas como o número a partir do qual a unidade fica inoperante). O analista do FSB admite também desconhecer as baixas das forças ucranianas pró-russas, pelo que o número poderá ser ainda maior do que os 10 mil da estimativa mais pessimista.
  8. A forma actual de que a guerra se está a revestir com o cerco, bombardeamento e ocupação de grandes cidades como Kherson e Mariupol vai aumentar o sentimento anti-russo na população e a resistência armada tenderá a intensificar-se, não a diminuir. Mesmo que a Rússia consiga ocupar ou cercar algumas das grandes cidades, a prazo será impossível impedir a entrada de comboios humanitários que vão anular ou mitigar os efeitos de qualquer cerco na população. E uma população motivada consegue resistir a um cerco. Os próprios russos deviam saber isso porque o cerco de Estalinegrado durou cerca de 900 dias, de 8 de Setembro de 1941 a 27 de Janeiro de 1944 e resultou na retirada alemã.
  9. O analista acredita que até finais de março vai ocorrer um desenvolvimento significativo na guerra, porque a actual situação é absolutamente insustentável, mas que existe uma distinta possibilidade de colapso do exército ucraniano o que, contudo, não irá reduzir a resistência atrás das linhas nem resolver o problema da ocupação russa.
  10. Admite-se que as forças ucranianas estão altamente motivadas e com um moral muito elevado, são bem comandadas, aos vários níveis da cadeia de comando, têm bom equipamento (sobretudo de infantaria) e têm informação de qualidade da frente de batalha devido ao seu conhecimento do terreno e à inteligência e satélites ocidentais e que são muito apoiados pela população e que a Rússia, em todos estes aspectos, está em posição de inferioridade.
  11. Os objectivos oficiais russos de “desnazificar” e “desmilitarizar” são impossíveis de alcançar porque imprecisos e não incluem parâmetros que possam ser facilmente medidos, consequentemente não podem ser atingidos e criarão sempre a sensação de “derrota” por parte do regime de Putin.
  12. O analista do FSB declara que Putin pode reagir às sanções do Ocidente ameaçando escalar o conflito até aos países europeus que fazem fronteira com a Rússia e que não é impossível o recurso a uma arma nuclear, para fins de intimidação, talvez um ensaio em águas internacionais (comentário meu), no Mar Negro, ou de uma pequena ogiva táctica numa região relativamente despovoada na Ucrânia ou no Atlântico norte. Esta possibilidade é reforçada pelo discurso de Naryshkin (Director do Serviço de Informações do Estrangeiro na Rússia) e das suas buscas por provas de um alegado desenvolvimento de armas nucleares por parte da Ucrânia. Provas forjadas podem servir de argumento ou para uma operação de “falsa bandeira” ou de pretexto para a utilização localizada de armamento nuclear.
  13. A operação e a concentração de recursos e abastecimentos terá impacto na guerra civil na Síria. Não é prático nem económico manter a logística das forças que a Rússia continua a manter na Síria apenas por via aérea. Além disso, se já existe escassez de munições nas forças russas na Ucrânia essa dificuldade deve ser muito maior na Síria.
  14. O texto termina com uma referência à possibilidade de Putin usar o “botão vermelho” nuclear para destruir o mundo. O alegado agente do FSB considera essa possibilidade de muito baixa probabilidade porque, em primeiro lugar, nem mesmo na autocrática Rússia de Putin a decisão não lhe cabe apenas de forma individual e porque não existe um único “botão” mas um sistema variado com diversos pontos de controlo. O analista anónimo tem dúvidas de que o sistema esteja a funcionar e que não é impossível que, mesmo que seja pressionado, um sistema tão complexo, distribuído, mal testado e mantido e que é essencialmente o mesmo desde a década de 1970, simplesmente não desencadeie nenhum ataque nuclear global. Por outro lado, Putin é demasiado hedonista para se sacrificar num inverno nuclear que inevitavelmente adviria de a Rússia lançar uma guerra nuclear contra o Ocidente.

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