Introdução
Em 17 de julho de 2014, o mundo ficou chocado com a notícia da queda, no leste da Ucrânia, do voo MH-17 da Malaysian Airlines, que ia de Amesterdão para Kuala Lumpur. Todos os 298 passageiros e tripulantes a bordo do Boeing 777, incluindo 80 crianças, morreram. Embora tenha sido um acontecimento excecionalmente trágico, este foi apenas um dos muitos episódios fatídicos ocorridos nesse ano. Ao longo de 2014, a maior guerra europeia desde 1945 desenrolou-se na Ucrânia, numa sucessão de escaladas armadas mensais cada vez mais alarmantes por parte da Rússia na Crimeia e na bacia do Donets (Donbas).
O gatilho inicial para o aumento das tensões e o eventual início da guerra foi a ambição da Ucrânia, desde 2008, de forjar uma relação contratual mais estreita com a União Europeia. Isto aconteceu através de um Acordo de Associação, que incluía a chamada Zona de Comércio Livre Abrangente e Aprofundado. Embora se trate, em grande medida, de questões económicas, este tratado – rubricado em 2012 e assinado em 2014 – foi visto por Moscovo como uma ameaça às suas ambições de continuar a controlar a Ucrânia e como um modelo perigoso a seguir por outras antigas repúblicas soviéticas.
A guerra da Rússia começou com a ocupação armada da Crimeia por tropas regulares russas, em fevereiro de 2014, e prosseguiu com a anexação da península em março de 2014. Seguiu-se, em abril de 2014, uma incursão de tropas irregulares russas – aventureiros paramilitares, extremistas políticos e cossacos – na bacia ucraniana do Donets (Donbas). Durante o mês de maio de 2014, entre outros acontecimentos, uma violenta escalada de confrontos de rua em Odessa causou mais de 40 mortos. Em junho de 2014, um avião de transporte ucraniano Il-76 que se aproximava do aeroporto de Luhansk foi abatido, matando todos os 49 tripulantes e soldados a bordo. O voo MH-17 foi abatido em julho. Por fim, as tropas russas regulares começaram a invadir em grande escala o leste da Ucrânia em meados de agosto de 2014.
Assim, durante seis meses, a atividade militar russa em solo ucraniano multiplicou-se de forma cada vez mais agressiva e as violações do direito internacional no coração da Europa foram-se tornando cada vez mais graves. No entanto, o Ocidente reagiu apenas docilmente com declarações políticas e medidas punitivas menores. As sanções sectoriais da UE só surgiram no final de julho de 2014, imediatamente após a Rússia ter abatido o voo MH-17.
Estas sanções foram anunciadas em 29 de julho de 2014, quando o exército ucraniano estava em ofensiva no Donbas. Nessa altura, não havia necessidade urgente de a UE impor novas medidas, uma vez que parecia que Kiev iria vencer no leste da Ucrânia até ao final do verão. Na altura da introdução das primeiras sanções sectoriais da UE, que continuaram a ser as medidas ocidentais mais severas impostas até fevereiro de 2022, ainda não era previsível que o avanço ucraniano contra as tropas irregulares dirigidas pela Rússia na Ucrânia fosse repelido um mês mais tarde em resultado do destacamento em grande escala de tropas russas regulares para o Donbas.
Estas circunstâncias ilustram como essa primeira ronda de sanções ocidentais de maior dimensão teve apenas uma relação indireta com a própria Ucrânia. A principal causa foi o assassínio em massa pela Rússia de cidadãos da UE, principalmente holandeses, no voo da Malaysian Airlines em 17 de julho de 2014, e não o terror em massa russo contra cidadãos ucranianos ao longo dos três meses anteriroes. Ao longo de mais de sete anos subsequentes, o conflito armado alastrou e ceifou milhares de vidas ucranianas. No entanto, uma vez que não se registaram mais mortes em massa de cidadãos da UE ou de outros cidadãos estrangeiros, o Ocidente apenas tomou relativamente poucas medidas adicionais.
Só depois da invasão total da Ucrânia pela Rússia, em 24 de fevereiro de 2022, é que o Ocidente começou a acordar para a realidade de que a Rússia é um Estado revisionista que procura impor a sua própria visão de uma ordem de segurança europeia. É certo que o Presidente Vladimir Putin já tinha indicado as suas intenções no discurso na Conferência de Segurança de Munique de 2007, e várias vezes desde então. No entanto, quando a Rússia lançou a sua agressão dissimulada contra a Ucrânia, em 2014, muitos no Ocidente ainda acreditavam que isso era o resultado de um mal-entendido mútuo, e que os objectivos da Rússia eram limitados. Só muito mais tarde é que se tornou claro para a maioria que não era esse o caso – e que, consequentemente, a nova situação exigia soluções diferentes das experimentadas noutros conflitos interétnicos.
Na altura, a guerra do Donbas de 2014-22 foi frequentemente interpretada como um conflito intra-ucraniano que podia ser resolvido isoladamente do contexto mais vasto da política externa russa. Estes esforços não só falharam, como também conduziram a um crescente aventureirismo por parte de Moscovo. Porque é que o Ocidente não conseguiu durante tanto tempo diagnostica corretamente o problema? E de que forma é que as lições deste fracasso são importantes hoje em dia?
Falta de conhecimentos específicos por país
O facto de as tensões entre a Rússia e a Ucrânia serem elevadas desde a independência da Ucrânia, em 1991, e a ingerência de Moscovo nos assuntos ucranianos tinham escapado em grande medida aos jornalistas, analistas e académicos ocidentais antes do início da intrusão russa aberta na Ucrânia, em 2014. Quando os jornalistas ocidentais chegaram para cobrir os acontecimentos desse ano, a situação no terreno era caótica e a sua interpretação era um desafio para muitos especialistas ucranianos recém-formados. Para muitos deles, as narrativas russas sobre a escalada regional no leste e no sul da Ucrânia eram simples, compreensíveis e faziam sentido – sobretudo para os repórteres com um historial de trabalho em Moscovo.
Nessa altura, havia uma falta flagrante de consciência internacional da metodologia híbrida da Rússia nas suas relações externas. Há dez anos, poucos compreendiam a nova forma de guerra russa, para a qual a Ucrânia era um campo de ensaio e que já tinha sido parcialmente implementada na Moldávia e na Geórgia. As tentativas de explicação da estratégia russa por parte de ucranianos, de outros europeus de Leste e de alguns peritos ocidentais atentos foram recebidas com ceticismo. Para os observadores externos, soavam a exageros alarmistas, argumentos maniqueístas ou mesmo teorias da conspiração.
Os repórteres ocidentais que chegaram ao leste da Ucrânia em 2014 testemunharam protestos pró-russos e ouviram frequentemente cidadãos ucranianos pró-russos. Muitas vezes não conseguiram contextualizar os acontecimentos ou classificar corretamente a importância da aparente tendência local pró-russa. Alguns observadores estrangeiros nem sequer conseguiam distinguir entre os residentes do Donbas e os “turistas políticos” dos Oblastos russos vizinhos que atravessaram a fronteira do Estado como aventureiros ou foram transportados de autocarro para a Ucrânia para participar na “primavera Russa”. Alguns dos agentes de Moscovo no Donbas tinham-se deslocado para a Ucrânia a partir de territórios controlados pela Rússia fora da Rússia, como a Transnístria, o que tornava pouco claro o envolvimento russo na suposta “rebelião” local.
Os jornalistas pró-ucranianos e as vozes políticas regionais anti-separatistas do Donbas, pelo contrário, enfrentaram ameaças abertas e violência física por parte dos seus opositores, muitas vezes guiados por Moscovo. Os habitantes locais pró-Ucrânia eram frequentemente incapazes de se exprimir publicamente, permanecendo assim invisíveis para os repórteres visitantes. Vários ucranianos orientais que resistiram à tomada do poder foram ameaçados, atacados, raptados, gravemente feridos ou secretamente mortos por colaboradores locais ou actores irregulares russos, muitos dos quais, se não a maioria, foram encorajados, financiados ou dirigidos pelo Kremlin em 2014-2021. Tudo isto preparou o caminho para a eventual anexação pela Rússia dos oblasts de Donetsk e Luhansk em setembro de 2022.
Olhar para a Ucrânia através das lentes russas
Os meios de comunicação ocidentais só alargaram a sua presença na Ucrânia no final de 2021, na véspera da invasão em grande escala. Antes disso, grande parte das reportagens era feita por correspondentes baseados em Moscovo que falavam apenas russo. O jornalista ucraniano e crítico dos meios de comunicação social, Otar Dovzhenko, disse à Radio Liberty: “Se vivermos na Rússia e lermos os meios de comunicação social russos, quer sejamos americanos, alemães ou franceses, começamos a ver os acontecimentos na Ucrânia, na Moldávia e na Bielorrússia um pouco através dos olhos russos”.
O Washington Post abriu o seu escritório na Ucrânia em maio de 2022, e a antiga correspondente do escritório de Moscovo, Isabel Khurshudyan, foi enviada para fazer reportagens sobre a Ucrânia. O New York Times abriu uma sucursal na Ucrânia em julho de 2022, e Andrew E. Kramer, que viveu na Rússia durante mais de 15 anos, foi nomeado diretor da sucursal de Kiev. Kramer tinha trabalhado no gabinete de Moscovo do New York Times e escrevera anteriormente artigos tendenciosos sobre a Ucrânia.
Um exemplo da reportagem desequilibrada de Kramer foi um artigo de fevereiro de 2022 intitulado “Armed Nationalists in Ukraine Pose a Threat Not Just to Russia” (Nacionalistas Armados na Ucrânia Representam uma Ameaça Não Só para a Rússia) – uma formulação que em termos gerais alinhava com a propaganda oficial russa, então como agor. O conteúdo do artigo, que foi publicado duas semanas antes da invasão total da Rússia, não era – ao contrário do título – uma repetição da justificação de Putin para o ataque à Ucrânia. No entanto, Kramer alertava para a existência de “dezenas de grupos de direita ou nacionalistas que representam uma força política potente na Ucrânia”. O quadro pintado por Kramer no artigo era uma deturpação do panorama partidário da Ucrânia no início de 2022. Ao exagerar a direita radical da Ucrânia, seguiu uma linha popular nos meios de comunicação social influenciados pelo Kremlin. Estes artigos teriam provavelmente sido escritos de forma diferente – ou não teriam sido escritos de todo – se o autor tivesse passado algum tempo a viver em Kiev e não em Moscovo.
Muitos acabaram por aprender a ser mais críticos em relação às narrativas russas, mas, por vezes, permanece um preconceito inconsciente. As pessoas mantêm as suas interpretações iniciais. É preciso tempo e esforço para desaprender as narrativas e explicações que ainda podem ser exploradas pela propaganda russa.
Distinguir factos de ficção
A partir de abril de 2014, ou mesmo antes, surgiram vários sinais de envolvimento direto da Rússia em acontecimentos suspeitos no Donbas. A maioria dos ucranianos compreendeu intuitivamente que algo estava errado desde os primeiros dias da alegada rebelião. Já pressentiam que a guerra estava a ser iniciada, dirigida e financiada pela Rússia. Em contrapartida, o Ocidente levou tempo a estabelecer, especificar e verificar os factos e a desmentir as muitas mentiras.
Uma abordagem circunspecta à informação proveniente de zonas de guerra é, em princípio, uma boa prática e serve para evitar erros jornalísticos, a disseminação de desinformação e uma dramatização desnecessária. No entanto, por vezes, essa cautela impede os correspondentes e comentadores de expressarem atempadamente as tão necessárias avaliações e interpretações. Independentemente da motivação, a lenta reação pública do Ocidente aos acontecimentos que se desenrolam no sul e no leste da Ucrânia deixou espaço para que fluíssem de Moscovo caudais de desinformação, meias verdades e narrativas elogiosas. Muitas delas, mesmo depois de terem sido desmentidas, ainda hoje circulam nas redes sociais e em alguns meios de comunicação tradicionais.
A consequente relutância ocidental em tomar uma posição e agir em conformidade em 2014-21 foi particularmente infeliz no que respeita à posição jurídica e à natureza política das chamadas República Popular de Donetsk (DNR) e República Popular de Lugansk (LNR) – os Estados satélites artificiais da Rússia no Donbas. O lado ucraniano tem vindo a afirmar há muitos anos que não existem entidades independentes como a DNR e a LNR. Ambos os pseudo-Estados eram regimes russos por procuração desde o início até ao seu fim, em setembro de 2022.
No entanto, só no final de 2022, na sua decisão sobre a admissibilidade parcial do caso MH-17, depois de a DNR e a LNR já terem desaparecido como entidades pseudo-independentes, é que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem confirmou oficialmente a verdade. O Tribunal estabeleceu que a Rússia tinha um controlo efetivo sobre os territórios da DNR e da LNR desde a sua criação em maio de 2014. Ao longo dos quase nove anos anteriores, a natureza da suposta “insurreição” do leste ucraniano e das “repúblicas populares” permaneceu uma questão controversa. Foi, e por vezes ainda é, controversa nos debates políticos, académicos e outros em fóruns públicos.
Como o Ocidente treslia a Rússia
Muitos políticos da Europa Ocidental guiam-se pelo paradigma da resolução pacífica de conflitos, nascido de um compromisso pós-Segunda Guerra Mundial de “nunca mais” permitir a guerra e o genocídio na Europa. Estes políticos acreditavam que a Rússia tinha aprendido as mesmas lições da Segunda Guerra Mundial. Os sinais de aviso cada vez mais óbvios de que Moscovo se guia por valores diferentes foram continuamente ignorados. Os objectivos finais e a estratégia global da Rússia permaneceram pouco claros até ao início de 2022.
Este problema de cognição resultou de um fosso fundamental, ainda não totalmente reconhecido, entre as visões do mundo neo-imperial russo e pós-colonial ocidental. Resulta também de uma diferença entre o modus operandi internacional de Moscovo e a cultura estratégica ocidental do pós-guerra. O modo operacional da Rússia é ágil, flexível, cínico, amoral e orientado para os objectivos; é também desenvolvido por tentativa e erro. O Kremlin procura vulnerabilidades que possam ser exploradas e prefere atacar, durante o maior tempo possível, abaixo do limiar que desencadeia a retaliação.
Os Estados e organizações ocidentais têm tentado lidar com as crises resultantes das acções russas numa base casuística, e dar prioridade ao ponto quente atual. Não abordaram adequadamente o grande desígnio de Moscovo de subversão flexível e a estratégia mais ampla do Kremlin de criação de caos, que está por detrás dos vários conceitos individuais do KGB, como as “medidas activas”. Inicialmente, alguns observadores estrangeiros mostraram-se até relutantes em reconhecer que a incursão da Rússia no Donbas constituía uma continuação da sua anexação da Crimeia.
No entanto, com cada semana de escalada russa contínua e novas revelações jornalísticas, tornou-se mais óbvio, ao longo de 2014, que o confronto armado no leste da Ucrânia tinha sido iniciado deliberadamente. Tornou-se também cada vez mais claro que o conflito estava a ser mantido em segredo por um dos dois lados. No entanto, manteve-se – entre alguns, até ao início de 2022 – a crença ingénua de que a guerra continuada da Rússia no leste da Ucrânia constituía apenas um confronto infeliz entre interesses locais igualmente legítimos, mas divergentes, a resolver através de negociação, deliberação e mediação conjuntas.
A Rússia manipula o quadro de resolução de conflitos
Seguindo as tácticas conhecidas como “controlo reflexivo” e “controlo da escalada”, a liderança russa recorreu à agressão instrumental através de proxies para impor a sua vontade à Ucrânia e para difundir a sua conceção do conflito entre os parceiros ocidentais de Kiev. O comportamento manifestamente ofensivo foi alternado com um suposto desanuviamento e algumas cedências fingidas para enganar os políticos e diplomatas ocidentais e para os manter esperançados de que a resolução pacífica continuava a ser possível. Por exemplo, a pedido de Putin, em junho de 2014, à câmara alta do parlamento russo, o Conselho da Federação retirou uma autorização anterior que tinha dado ao Presidente para utilizar as tropas russas na Ucrânia, em março de 2014. O objetivo era, supostamente, apoiar uma solução negociada para o conflito.
Unidades inteiras das forças terrestres regulares russas entraram na Ucrânia em grande escala em meados de agosto de 2014 e continuaram a ser colocadas secretamente no Donbas desde então. Por outro lado, o projeto Novorossiya (Nova Rússia), a intenção de Moscovo de separar todo o sudeste ucraniano do controlo de Kiev, foi suspenso em outubro de 2014. Esta mudança de retórica do Kremlin foi entendida por muitos como um gesto de desanuviamento. No entanto, constituiu apenas um recuo tático de Moscovo. O projeto foi reavivado oito anos mais tarde, em ligação com a “operação militar especial”, e está hoje a ser implementado através do destacamento indisfarçável em grande escala de forças regulares russas.
Não é apenas na Ucrânia que o envolvimento da Rússia em negociação de acordos com o seu inimigo é frequentemente acompanhado por uma escalada militar planeada para exercer a máxima pressão sobre o parceiro de negociação. No verão de 2014 e no inverno de 2014-2015, incursões maciças de tropas regulares russas na Ucrânia e ataques às tropas ucranianas, em manifesta violação dos acordos com Kiev, precederam os acordos de Minsk. Ao longo das conversações, Moscovo recordou a sua disponibilidade permanente para a agressão e a escalada. Mobilizou ativamente as suas forças regulares e por procuração antes, entre, durante e após as negociações até 2022, em grande parte com impunidade. Ao mesmo tempo, Moscovo manteve plena participação no Formato da Normandia, no Grupo de Contacto Trilateral (Processo de Minsk) e em duas missões especiais de observação da OSCE, dando a ilusão de que ainda era possível uma resolução pacífica.
A agressão doseada e, por vezes, limitada da Rússia não foi um sinal de moderação. Pelo contrário, foi concebida para atingir os objectivos russos sem um envolvimento militar russo aberto e maciço durante o máximo de tempo possível, a fim de evitar o desencadeamento de medidas de retaliação. Os movimentos supostamente conciliatórios de Moscovo e as suas tácticas dilatórias conseguiram enganar muitos observadores ocidentais. Os ziguezagues do Kremlin forneceram motivos suficientes para que diplomatas e observadores só superficialmente atentos afirmassem que a resolução pacífica do conflito continuava a ser possível. Entretanto, a Rússia consolidou o controlo sobre os territórios capturados e preparou os próximos passos.
A ilusão continua após a invasão em grande escala
Só depois de 24 de fevereiro de 2022 é que o Ocidente acordou para a realidade, tomou medidas decisivas e impôs sanções económicas substanciais à Rússia. Pouco depois, os países ocidentais começaram também a fornecer armas pesadas à Ucrânia. Já havia boas razões para o fazer em 2014, quando os territórios ucranianos foram invadidos e anexados por tropas regulares e irregulares russas. No entanto, o Ocidente baseou-se numa abordagem de gestão da escalada que confundiu o uso subliminar da força por parte da Rússia com um sinal de moderação. Como consequência, o conflito só se agravou.
Pior ainda, certos tipos de ilusão ocidental continuaram mesmo após a invasão em grande escala. Por exemplo, o julgamento holandês de 2022 de quatro combatentes – três cidadãos russos e um cidadão ucraniano – que participaram na operação russa no Donbas dez anos antes, que levou ao abate do voo MH-17, foi um processo ambíguo. Os investigadores, os procuradores e o tribunal holandeses fizeram um excelente trabalho ao estabelecer os pormenores materiais deste crime em massa. No entanto, curiosamente, o julgamento atribuiu erradamente a responsabilidade por este crime a três combatentes paramilitares, e não ao exército e ao Estado russo.
O Tribunal considerou que os três “combatentes da RPD [República Popular de Donetsk] e, por conseguinte, também os arguidos, não podem ser considerados como fazendo parte das forças armadas da Federação Russa”. Reconheceu também que “a utilização de um Buk TELAR […] exige uma equipa altamente treinada. Além disso, a arma não pode ser utilizada de forma casual”. No entanto, o tribunal decidiu ainda assim que “considera legal e conclusivamente provado que [Igor] Girkin [antigo oficial do FSB que desempenhou, como combatente irregular, um papel importante na anexação ilegal da Crimeia e na guerra da Rússia no leste da Ucrânia] estava em posição de decidir sobre a instalação e utilização do Buk TELAR”.
É uma conclusão estranha, na medida em que Girkin e os outros combatentes paramilitares não estavam em posição de dar ordens aos soldados russos regulares que operavam o sistema Buk. A responsabilidade pelo assassínio em massa de 298 civis a bordo do voo MH-17 cabe aos oficiais e generais das forças armadas russas, bem como ao seu comandante-em-chefe, Vladimir Putin. Os pequenos aventureiros irregulares russos ou ucranianos presentes no local limitaram-se a ajudar os soldados russos a orientarem-se no leste da Ucrânia.
Este exemplo ilustra a que ponto é hoje importante aprender e tirar conclusões adequadas da experiência da guerra da Rússia no Donbas em 2014-2022, e da observação do comportamento de Moscovo noutros locais do espaço pós-soviético. É estranho que os porta-vozes russos e pró-russos que apelam a uma solução diplomática rápida continuem a ser levados a sério, enquanto Moscovo expande diariamente a sua ocupação da Ucrânia, cuja simples cessação poria fim à guerra. A cartilha russa continua a ser a mesma: Moscovo continua a construir e a enraizar narrativas históricas falsas, continua a tirar partido das tensões sociais e da indulgência política nos países-alvo, faz uma escalada horizontal e procura, assim, impedir uma resposta resoluta.
Conclusão e recomendações políticas
Aqueles que defendem negociações e uma solução ao estilo de Minsk para a Guerra Russo-Ucraniana fazem-no frequentemente com base no pressuposto de que ainda existe um equilíbrio estável ou uma relação de status quo que poderia ser alcançada através de uma simples negociação com Moscovo. Esta noção baseia-se, como ilustrado acima, num mal-entendido fundamental sobre a mentalidade e as políticas do Kremlin. As raízes do conflito de hoje residem na natureza ditatorial e imperialista do atual regime russo, bem como na sua rejeição fundamental do direito internacional e da Ordem de Segurança Europeia. As razões do conflito não são o resultado de um desequilíbrio infeliz, de erros diplomáticos ou de mal-entendidos mútuos, a cuja correção se atribui a capacidade de resolver facilmente o conflito. A guerra é antes determinada pela ideologia, estrutura e legitimidade peculiares do governo de Putin.
Esta conclusão conduz às quatro recomendações políticas que se seguem:
A história acima referida da escalada no Donbas e outras experiências com Moscovo no espaço pós-soviético fornecem lições importantes para a interpretação e resolução da atual guerra russo-ucraniana em grande escala. Acima de tudo, a guerra deve ser universalmente entendida e publicamente rotulada como um “problema da Rússia” e não uma “crise da Ucrânia”. Este desafio russo deve ser abordado e resolvido como tal.
O Ocidente e outros observadores estrangeiros não devem ser enganados mais uma vez por Moscovo e não devem voltar a tratar os desenvolvimentos diplomáticos, políticos, sociais e militares russos como não relacionados. A utilidade de instrumentos clássicos de restabelecimento da paz internacional, como a mediação, a transformação e a pacificação de conflitos, tem de ser avaliada de forma crítica em casos de guerras expansionistas neo-imperiais com aspectos genocidas.
Com base nas experiências falhadas de anteriores esforços de restabelecimento da paz, e enquanto forem impossíveis negociações significativas com a Rússia, a tarefa do dia é apoiar militarmente a Ucrânia. Isto deve acontecer de forma a que, quando as conversações de paz começarem, Kiev possa negociar a partir de uma posição de força – ao contrário do que aconteceu nas negociações de Minsk de 2014-2015 ou de Istambul de 2022. Garantias de segurança sérias e poderosas medidas de dissuasão militar devem fazer parte de qualquer futuro acordo de paz para a Europa de Leste, para assegurar que a Rússia não utiliza uma trégua temporária para preparar um novo ataque.
É necessário afetar recursos mais avultados à investigação, publicação e educação sobre as várias estratégias e tácticas de subversão, corrosão e expansão da Rússia, que são perturbadoras e enganadoras, públicas e secretas, militares e não militares. Para além de mecanismos de proteção mais eficazes, os países e as organizações ocidentais precisam de desenvolver contra-estratégias de toda a sociedade que não se limitem a proteger as sociedades ocidentais das ameaças russas e de outras ameaças híbridas. Devem também combater ativamente os criadores, implementadores e distribuidores de informações falsas, discursos inflamatórios, narrativas de escalada, malware de espionagem, vírus informáticos, etc.