O caso das “golas inflamáveis”, que se transformaram inevitavelmente em mais um caso de luta política, vai muito além dessa mera circunstância mediática e reconduz-nos a algo mais vasto: quais são as regras na contratação de bens e serviços, que as chamadas entidades adjudicantes, entre as quais o Estado e as Autarquias, têm de cumprir para assegurar a legalidade e a concorrência, quando contratam um serviço ou adquirem um bem ou equipamento?

Diz-se na gíria popular que “levou um barrete” um sujeito que compra algo que não lhe serve para nada ou para muito pouco, pagando um preço, que se não fosse imprevidente ou ingénuo, lhe permitia adquirir algo melhor e útil.

Parece-nos que o cidadão comum já tem a ideia assente que o Estado e as Autarquias são frequentemente vítimas (voluntárias ou involuntárias) de “barretes”. Vamos tentar ajudar a perceber porquê.

Se no âmbito da aquisição de serviços, por exemplo de natureza intelectual, o uso do concurso público é praticamente impossível quando não notoriamente inconveniente (não cumpre entrar aqui nesse tema), já no que se refere à aquisição de bens e equipamentos, num mundo ideal de verdadeira concorrência, todas as aquisições do Estado seriam feitas por concurso público, aberto por conseguinte a todo o mercado. O critério de adjudicação seria o do melhor preço. Nestas condições seriam drasticamente reduzidas as habituais (e legitimas) suspeições de corrupção, compadrio e favorecimento, e o mercado teria muito mais condições para se expandir, pois todos os agentes económicos a tudo se poderiam candidatar, não estando dependentes de pré-critérios de selecção de “ convidados” escolhidos pelo departamento do Estado ou pelo Município em causa.

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A opção da escolha simultânea do concurso público e do melhor preço como critério geral (salvo excepções muito bem justificadas) também evitaria a manipulação das classificações das propostas por Júris, que raramente são competentes e, em muitos casos, nem sequer são sérios. Então pergunta-se, porque é que isto não é feito? As razões são várias.

Em primeiro lugar, a nossa lei de contratação pública permite que para aquisição de bens ou serviços, a entidade que contrata, possa escolher apenas um convidado, se o valor da compra for inferior a 20.000 euros, ou limite o convite a três entidades à sua escolha, se o valor for inferior a 75.000 Euros. Abaixo destes valores, também poderia optar pelo concurso público, mas para tal é necessário que seja essa a vontade do adquirente e normalmente não é.

Portanto, se quisermos ser verdadeiros e abandonarmos “rodriguinhos jurídicos”, na aquisição de bens e serviços até 75.000 euros não há concorrência. Isto significa, seja o convite feito a uma ou a três entidades, que o dirigente de cada instituição, até àquele valor, adquire-os a quem quer e bem entenda.

Existe uma norma travão à continuidade interminável destas adjudicações aos mesmos convidados (um plafond máximo de valor nas adjudicações durante 3 anos consecutivos) mas facilmente ludibriável, se o convidado habitual, constituir outra entidade comercial, que com outro nome e outro NIF vende o mesmo produto ou serviço, ganhando assim e sucessivamente mais 3 anos de adjudicações.

Em segundo lugar, como justificação para abdicar do concurso público, temos o designado peso da burocracia. Esta é a mais falsa das razões apresentadas para a fuga dos adjudicantes aos concursos públicos. Na verdade, e nos termos da nossa lei de contratação pública, o único acto que é diferente no procedimento, entre um concurso público e um convite a 3 entidades previamente escolhidas, é que no primeiro caso tem de se publicar um anúncio no Diário da República e no segundo, enviam-se três emails com convites às entidades preferidas pela entidade pública, sem que exista qualquer conhecimento ou escrutínio público sobre o critério das escolhas para tal aquisição.

Salvo a obrigação do anúncio, o procedimento subsequente — a tal burocracia —  é igual em ambos os tipos de opção: terão sempre de ser apresentadas propostas, serão avaliadas, será escolhida a melhor proposta, ao que se segue a adjudicação, a apresentação de documentos sobre capacidade e idoneidade do adjudicatário, a assinatura do contrato e a publicação no Portal dos Contratos Públicos. Se é isto que representa a burocracia, então é a mesma burocracia, seja para os ajustes directos ou para os concursos públicos.

Não é a burocracia (que tem costas largas) que motiva o recurso aos convites a uma ou a três entidades, em detrimento de abrir a aquisição a todas as entidades fornecedoras, através de concurso público. A razão é em primeira linha política. A opção do concurso limitaria muito o poder discricionário dos titulares de cargos políticos de escolherem a quem pretendem adjudicar a aquisição dos bens para as instituições que dirigem, durante o tempo dos mandatos, que é limitado. Com um concurso público, as empresas poderiam competir em todo o território (e Portugal não é assim tão grande) e algumas até teriam de sair da zona do conforto, das autarquias ou dos departamentos regionais do Estado em que se inserem. Estão a ver o problema político que isso criaria ao autarca do concelho XPTO, se as empresas do seu concelho, sistematicamente perdessem as adjudicações para empresas de outros concelhos, se estas apresentassem preços mais competitivos em concurso público. Está já a ver porque isto nunca será feito, não está?

Em terceiro lugar, temos o problema dos preços de aquisição. A lei da contratação pública obriga a que o adquirente público fixe um preço-base inexcedível para o que pretende adquirir, seja ele um aparelho de ar condicionado, um computador, uma gola, um serviço de segurança, refeições etc. etc.

Todos os convidados (em ajustes directos com convite a um ou a três) ou todos concorrentes em concurso público que apresentarem uma proposta com valor superior ao preço base são imediatamente excluídos.

A definição do preço base é uma das mais importantes incumbências das entidades adjudicantes. Nem deverá ser um preço de tal modo baixo que ninguém (com juízo) queira apresentar proposta nem um preço demasiado alto e permitir que o melhor preço apresentado seja ainda assim demasiado oneroso, sem necessidade de pagar tanto, se o “trabalho de casa” do adquirente tivesse sido feito.

As entidades públicas erram demasiado na fixação dos preços-base. E em ambas as situações: ora são demasiado baixos, ora desnecessariamente elevados.

As mesmas entidades, também falham consecutivamente na definição das características dos produtos que pretendem adquirir. De facto, fazer isso bem feito implica muito trabalho. Não é de surpreender que muitas vezes sejam adquiridos bens de menor qualidade, ou desadequados dos fins a que se destinam, bens com manutenções dispendiosas, bens em descontinuidade ou mesmo inúteis. O caso das “golas de poliéster é apenas um exemplo – que só não é meramente ridículo, porque estamos a falar de proteção individual em incêndios – entre muitos casos bem mais graves em que a administração central e local são quotidianamente prejudicadas na qualidade do que adquirem por negligência dos seus próprios funcionários, que instruem os ajustes directos ou concursos.

Como é que isto se corrige ou, pelo menos, se melhora? Com funcionários preocupados, diligentes, capacitados e tecnicamente competentes. Não existem nas instituições públicas? Existem, mas são escassos. E se persistirem em ser muito diligentes, podem ser severamente discriminados pelos colegas.

Não nos serve para nada a estatística que, em média, não temos mais funcionários públicos do que os países da União. Isso é enganar tolos. Aquilo que necessitamos para que a contratação pública funcione ao nível da administração central e local, são funcionários tecnicamente competentes. E hoje com o nível salarial que já possuem, comparado com o que se paga a um técnico competente no sector privado (isto é, paga-se abaixo do sector público), o recrutamento não deveria ser difícil.

Ora, como não há dinheiro para tudo, há que prescindir – lamento a crueza: mandar para casa – uma boa parte dos milhares de funcionários sem formação e com nenhuma vontade de aprender. Mas a lei estabelece que, uma vez funcionário público, se é funcionário público para a vida. Mesmo que o salário e as restantes regalias desse funcionário tenham ou não algum retorno para a comunidade que lhe paga. Reformar a administração pública não é reduzir funcionários. Reformar, como medida sem a qual as restantes são inúteis, é substituir os funcionários medíocres por bons funcionários. Mas a inultrapassável razão para esta inércia na reforma da administração central e local não é a dificuldade de mudar a lei. A dificuldade inultrapassável é que mexer nisso faria irremediavelmente perder as eleições a quem ousasse fazê-lo. Esta situação acaba, assim, por ser um não-problema, pois o que não tem resolução, resolvido está.

A comunidade continuará a pagar muitas mais “golas de poliéster” e “barretes” bem mais graves. Ninguém vai ser dispensado ou sancionado pelo erro cometido, como já se viu, uma vez iniciado o jogo de passa culpas, modalidade na qual – se existisse – seriamos campeões do mundo, seguramente.

Jurista