Só por muita ignorância ou má vontade se pode pensar que a polémica com a tradução do poema “The Hill We Climb”, de Amanda Gorman, é mera embirração da moda identitária e politicamente correcta. Como é óbvio, se queremos uma tradução fiel ao original, é indispensável que a identidade do tradutor seja coincidente com a do autor. Caso contrário, se nos fiarmos apenas em características técnicas objectivas, como domínio da língua e competência profissional, em vez de em sensações, ficamos com uma versão abastardada que se prestará a grandes equívocos. Atentemos ao Evangelho segundo Mateus 1:19-23:

“José, seu esposo, sendo um homem reto e não querendo expô-la em público, decidiu divorciar-se dela secretamente. Estando ele com esta intenção, eis que em sonho lhe apareceu um anjo do Senhor, dizendo: ‘José, filho de David, não temas tomar Maria como tua mulher. O que nela foi concebido vem de um espírito santo. Ela dará à luz um filho, e pôr-lhe-ás o nome de Jesus: pois será ele que salvará o seu povo dos seus erros. Tudo isto aconteceu para que se cumprisse o que foi afirmado pelo Senhor através do profeta, ao dizer: eis que a virgem terá no ventre um filho e o parturirá; e chamá-lo-ão pelo nome de Emanuel, o que significa Deus connosco.’”

A propósito da passagem acima, diz Frederico Lourenço, na introdução desta sua tradução do Novo Testamento: “Outra profecia determinante (…) é aquela, segundo a qual ‘a virgem terá no ventre um filho e o partuirá’ (Isaías 7:14). Ora, esta é, de todas as profecias citadas nos Evangelhos, aquela que porventura terá feito correr mais tinta, pois é nela que assenta a crença cristã na virgindade de Maria.

Basear-se-á esta crença, como pensam alguns leitores mais céticos, num mal-entendido linguístico? Todos os comentadores modernos concordam que a palavra hebraica almá (utilizada no texto original de Isaías) não significa «virgem». Traduzida, porém, na versão grega dos Setenta por parthénos, que designa uma jovem solteira que pode ser (ou não) virgem, contribuiu para consolidar a crença de que a mais famosa parturiente da cidade de Belém pôde engravidar sem que para isso tivesse tido de perder a virgindade.”

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Este erro de tradução – responsável por tanta rebarba em adolescentes católicos – teria sido evitado se, como os editores holandeses e catalães responsavelmente decidiram, quem primeiro teve a ideia de verter a Bíblia para grego tivesse arranjado um tradutor étnica, cultural e celestialmente próximo do autor. Neste caso, uma outra divindade, também semítica, também criadora do Céu e da Terra e também preocupada com as tropelias do Seu povo escolhido. Só outro Deus Todo-Poderoso para perceber a maçada que é realizar a Criação em apenas seis dias (sobretudo o pesadelo da escolha de materiais), as desilusões que um Povo Eleito causa, ou a bizarra mania de comunicar através de eventos climáticos extremos.

No entanto, em vez de procurarem um tradutor com estas características, optaram por um conjunto de 72 sábios judeus. Em vez de um Ser Sobrenatural, 72 homens hétero-cis-normativos – e circuncisados. Ora, por mais fanfarrão que um sábio judeu possa ser, não é divino. E não partilha o lugar de fala com Deus. Que é, ao que tudo indica, alguns quilómetros acima de Alexandria, onde a empreitada decorreu. Bem sei, é um paradoxo tramado de resolver, o de traduzir as palavras de um Deus Único recorrendo a outro Deus Único, mas ao menos podiam ter tentado.

O mesmo já não se pode dizer do Anjo do Senhor que fala com Maria. Aí, já não há desculpa. Quem, mais tarde, transpôs aquela conversa para grego, podia perfeitamente ter cedido o lugar a outro Anjo do Senhor. A crer na Bíblia, estavam sempre a aparecer em todo o lado. Os Anjos eram o WhatsApp divino. Quando não era com tempestades de fogo, era através de Anjos que o Senhor falava. É muito provável que um deles não se importasse de dar umas dicas na tradução.

Foi com certeza a pensar nesta história que os editores holandeses e catalães resolveram substituir os tradutores originalmente escolhidos por outros que possam interpretar como deve ser as palavras de Amanda Gorman, por também serem mulheres negras. Há quem esteja chocado com esta modernice da Teoria Crítica da Raça, que defende que somos definidos por traços identitários e que, se não os partilhamos, não estamos habilitados a compreender pessoas diferentes de nós. Os chocados enganam-se, não se trata de modernice: o que esta Teoria diz com jargão académico do séc. XXI é o mesmo que um membro do Ku Klux Klan diria, com mais clareza, em 1930. Isto é, “os pretos são todos iguais” e “os pretos não são iguais a nós”. Onde a Teoria diz que um branco não tem a vivência para conseguir abarcar todas as dimensões da poesia de Amanda Gorman, um segregacionista de antanho dirá “os pretos não se sabem fazer entender”.

Sempre houve essa ideia, por parte de adeptos da discriminação racial, de que há certas profissões que estão destinadas a serem desempenhadas por negros. Aos tradicionais trabalho doméstico e construção civil, junta-se agora a tradução de autores negros. Curiosamente, apesar de serem ocupações tão diferentes entre si, essa ideia diz-nos que as três são apropriadas para negros pela mesma razão: os negros são fisicamente mais aptos para as desempenhar. Segundo Inocência Mata, citada por Isabel Lucas a propósito deste tema: “No caso de Amanda Gorman faz sentido falar de oportunidade perdida. O discurso de que não importa a cor é um discurso que foi sempre usado para perpetuar o estado de subalternidade dos profissionais não brancos.” E elege como tema aqui a questão da diversidade e da representatividade que ultrapassa a mera estética ou competência tradutória.” No caso, mais uma vez, sublinha a essência do spokenword, que tem a ver “com ritmo corporalidade”.

Afinal, isto da tradução às vezes não é assim tão complicado. Até eu, homem branco, sou capaz de traduzir “tem a ver com ritmo corporalidade”: é a forma académica de afirmar o estereótipo racista de que o corpo dos negros está mais bem adaptado para certas actividades.

Agora, a bem do anti-racismo, não é suficiente mudar de tradutores. Não basta que o tradutor de um autor negro seja negro. Para haver verdadeira justiça racial, também os leitores devem ser negros. Não faz sentido que um branco possa ler um poema que, é evidente, não conseguirá compreender. É até ofensivo que tente. E ainda mais ofensivo que ache que conseguiu. A interpretação será sempre errada, logo injuriosa. Por isso, traduza quem traduzir, não vou ultrajar Amanda Gorman lendo o seu poema. Aliás, depois de aturada pesquisa, concluí que o único autor que tenho legitimidade para ler é Estrabão, o filósofo, historiador e geógrafo grego. Como eu, também era vesgo.