Creio que em meados de 2030 eu já vá ter filhos cujas idades viabilizem conversas sobre as eleições 28 de outubro de 2018. Sim, ainda tenho um fio de esperança de lhes contar uma linda história sobre uma surpreendente virada numérica na reta final, evitando que a história que eu tenha que lhes contar seja uma história que me faça chorar aos soluços no meio, em vez de apenas ficar com os olhos marejados.

Contarei que nessa época boa parte do Brasil estava dividido entre dois estranhos lados: um chamado de “lado dos petistas” e outro chamado de “lado dos bolsominions”. Eles me perguntarão “mamãe, você era petista ou bolsominion?” e eu terei a dura tarefa de explicar que eu não era nenhuma das duas coisas.

Mas explicarei claramente que eu escolhi um lado, sem qualquer ponta de dúvida. O lado que se opunha com todas as suas forças contra aquele estranho homem chamado Jair Bolsonaro, cujas imagens eu não mostrarei às crianças, porque em termos de pesadelos, já bastam os que eu tive em 2018. Não, eu não era petista, nem havia votado no PT no primeiro turno. Não defendia o partido em si, mas defendia o país de uma das ameaças mais assustadoras que já havia passado por lá. E olha que já tínhamos encarado zika vírus e dengue.

Serei obrigada a explicar aos meninos que Bolsonaro era favorável à tortura, à ditadura militar, ao armamento da população, ao extermínio da oposição, ao fim das políticas afirmativas, ao fim da promoção da igualdade, ao fim do diálogo. Vou explicar o que era cada uma dessas coisinhas, para que eles entendam a dimensão do problema. Explicarei que Bolsonaro tinha orgulho de odiar os gays. E eles me perguntarão: o que o Tio Léo e o Tio Murilo fizeram pra ele? Nada, eu terei que responder, constrangida. Explicarei que Bolsonaro pregava a intolerância contra os negros e defendia que as mulheres ganhassem menos que os homens, mesmo que fazendo um mesmo trabalho. Como dizer isso a crianças?

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Vou ter que narrar coisas duras, apesar da pouca idade deles. Explicar que um mestre de capoeira foi morto com facadas por ter votado no Haddad, o candidato do outro partido. Explicar que milhares de pessoas apanharam nas ruas por se manifestarem contra o Bolsonaro. E, sim, vou ter que contar que mamãe recebeu ameaças bem sérias por fazer críticas a ele nos jornais. Recebeu mensagens dizendo para ela ficar em Portugal, porque no Brasil mulheres como ela seriam mortas a paulada. Mensagens dizendo para ela começar a contar seus dias. Mensagens dizendo para ela voltar para o tanque porque se ela continuasse escrevendo, não iria durar muito.

Os meninos não vão merecer ouvir isso. Mas vão precisar ouvir. E quando perguntarem “mas mamãe, você não ficou com medo?” eu vou dizer que fiquei com bastante medo. Que chorei muitas noites antes de dormir, não só com medo por mim, mas com medo pelo Brasil todo. E vou explicar que tive que seguir em frente, mesmo com medo, porque é assim que a vida é. A gente pode ter medo, só não pode deixar que ele nos impeça de continuar.

Não sei qual vai ser o desfecho da história. Provavelmente contarei que o Bolsonaro foi eleito, para o assombro das crianças. “Mas mamãe, a maior parte das pessoas quis que esse homem fosse o presidente? Por quê?”. Vou dizer que o Brasil atravessava um momento ruim, que muitos estavam descontentes com os últimos presidentes e que algumas pessoas tentaram apostar naquele homem como uma tentativa maluca e inconsequente de mudança total. E eles perguntarão “mesmo sabendo que ele queria fazer tantas coisas ruins?”. Sim, queridos. Sim. E um suspiro.

Não, não sei o que vai acontecer. Mas continuarei aqui. Escrevendo o que julgo que precisa ser dito, defendendo as coisas nas quais acredito, sonhando com um futuro não tão horrível quanto está parecendo agora. Mas, de fato, agora já não sei. De toda forma esses meninos saberão que a mãe deles fez o que era possível. Essa serenidade, ao menos, consigo ter. E que Deus nos proteja.