Há quase cinco anos estive em Salvador, na Bahía, onde fui companheiro durante um par de horas de um taxista que depressa decidiu, apenas para passar o tempo e porque eu, enfim, era português, que tinha à sua frente a pessoa certa para lhe contar coisas sobre Portugal, o «País original», como me disse. Tinha visto há pouco tempo um documentário numa televisão brasileira sobre nós e apanhou-me ali a jeito, mesmo ao lado dele, de calções, t-shirt e chinelos, para tirar umas coisas a limpo, enquanto me levava até à zona do Pelourinho. Queria saber, porque não tinha percebido no tal documentário, qual era o nosso motor económico. Engasguei-me. Ignorância minha, provavelmente, mas eu nem sabia que Portugal tinha um motor económico. Tentei mudar o rumo da conversa, depois de me ter ocorrido dizer-lhe, para acabar com o assunto, que Portugal se limitava a viver de empréstimos e impostos, mas decidi fazer com que o ponto da vergonha fosse o Brasil corrupto de que na altura muito se falava e não o Portugal para o qual sempre me falta um adjectivo. O taxista baiano não se deixou intimidar. Queixou-se do PT daquela época, das trapalhadas de Lula e Dilma, da desilusão que Aécio tinha sido para ele, do golpe, da corrupção por todo o lado. Assumiu a sua vergonha, deixou-me sem recursos e voltou à carga. Como vive a economia portuguesa?, insistia. A pergunta era honesta. Enchi-me de coragem e disse-lhe que o turismo naquela altura estava em expansão. Que as exportações tinham dado um salto. Que os têxteis isto, o horto-frutícola aquilo, o calçado, a cortiça e o vinho. Depois apercebi-me do quão ridículo estava a ser e fui directo. Sabe o que é Portugal, senhor? É igual ao Brasil, mas mais pequeno e com menos crime. Rimos. «Eles falam que somos irmãos, mas o portuga é que é o pai, viu? O filho não podia dar certo», finalizou ele. Depois perguntou-me se somos mesmo dez milhões como andava a ouvir há muitos anos. Disse-lhe que sim, mais coisa menos coisa. E o baiano riu alto porque se a população era sempre a mesma então era porque não tínhamos filhos. E ele tinha sete: «Todo o Europeu fala que ter filho sai caro, mas todos na Europa tinham mais filhos quando eram mais pobres.»

Saímos do Pelourinho. Na via rápida para o aeroporto apanhámos fila. O taxista, que, apesar de tudo, parecia estar convencido de uma suposta superioridade civilizacional portuguesa, afirmou, cheio de certezas, que nós não tínhamos trânsito. Ele, que nunca tinha vindo a Portugal, achava que nas estradas lusitanas era sempre a andar. E eu respondi-lhe como quem anuncia na rádio: trânsito demorado no Eixo Norte-Sul, no IC19, na A5, no túnel do Marquês, na saída para as Amoreiras, na curva do Palácio, no IC20, na A2, na Ponte Vasco da Gama, no Nó de Francos, na Ponte da Arrábida, na A4, na Via de Cintura Interna, na saída para Bessa Leite. Ria-se. Achava, ainda assim, que nós tínhamos uma certa qualidade de vida nas cidades que eles no Brasil não tinham. E, para desanuviar e sem me deixar ripostar, lembrou-se de um bolinho que tinha visto no tal documentário. Uma coisa assim redondinha, meio amarela, meio queimada. Um pastel de nata. É isso, pastel de nata. Ninguém diria que aquilo é um pastel. Tem nata? Tem nata. Dizem que é uma especialidade. É, é. Há quem coma com canela, mas eu prefiro sem. E a massa é folhada, tem que estar bem crocante, estaladiça, sabe? E o recheio não pode estar demasiado duro, não pode ser muito cozido, tem de escorrer para os dedos. O baiano, rindo, quis explicar definitivamente por que razão os Portugueses, segundo ele, vivem melhor que os Brasileiros: quando há trânsito, os Portugueses não se zangam porque chegam a casa, comem um desses docinhos redondinhos, meio amarelos, e tudo passa. Trocámos uns olhares: eu querendo explicar-lhe que ninguém em Portugal come pastéis de nata todos os dias; ele a adivinhar o que me ia na cabeça sem querer acreditar. Optei por não desiludir e confirmei, através do silêncio, a tese do pastel de nata diário após o trânsito da IC19.

Estou a terminar pouco mais de duas semanas e meia de férias, boa parte delas passadas num lugar com pouca cobertura de rede de telemóvel, sem wi-fi e sem televisão por cabo. No regresso ouvi umas coisas sobre o congresso do Partido Socialista, em Portimão, e lembrei-me deste episódio de há cinco anos, em Salvador, na Bahía. Presumo, depois do pouco que ouvi, que aquela frase célebre de Millôr Fernandes se aplica não só ao Brasil mas também a nós: Portugal está condenado à esperança. É a única coisa que nos resta.

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