“O Rubicão, como sabemos, era, à vista, um riacho insignificante; o seu significado repousava inteiramente em certas condições invisíveis”. Esta passagem de Middlemarch, o grande romance de George Eliot, é daquelas sobre as quais se pode pensar uma vida inteira, atribuindo-lhe sentidos diferentes, mas em larga medida coincidentes. Mas o Rubicão era, de facto, um riacho insignificante – aprendi há uns anos que era tão insignificante que desde há muito ninguém sabe a sua localização exacta – e o seu significado depende por inteiro do valor simbólico da sua travessia por César, que levaria ao fim da república romana. Provavelmente, nunca o ínfimo e o maximamente significante se encontraram como aqui tão intimamente associados. Os valores simbólicos são invisíveis, mas possuem eficácia real.
Uma eficácia muito real e praticamente desmesurada, no sentido exacto em que as condições invisíveis, ao contrário dos riachos, se encontram para além de toda a possibilidade de uma medição que não seja arbitrária e muito artificial. São elas que constituem não só o contexto das acções humanas individuais, como a de César, mas também, e mais profundamente, o modo de ser das sociedades. O que faz de cada sociedade um indivíduo identificável – o que faz dos Aztecas ou da sociedade vitoriana, por exemplo, algo de irredutivelmente singular – é o conjunto das condições invisíveis que lhes são específicas, aquilo que o filósofo Cornelius Castoriadis, prolongando à sua maneira Max Weber, chamava “significações imaginárias sociais”. E é por isso que as sociedades não se limitam a ser diferentes umas das outras, como são diferentes uns dos outros os frigoríficos ou os carros: o termo correcto aqui não parece ser “diferença” – antes “alteridade”. O que conta é o que faz sentido para cada sociedade. E o que faz sentido, o que é determinado pelas condições invisíveis, para uma sociedade não faz sentido para outra.
De resto, a transformação das condições invisíveis pode-se observar, ao longo de uma vida, no interior de uma só sociedade. E não é necessário recorrer ao conhecimento indirecto dos historiadores ou ao conhecimento mais indirecto ainda que obtemos através da leitura das obras deles. Basta alguma sensibilidade à história, algo que nunca fez mal nenhum a ninguém. E qualquer um pode cultivar essa sensibilidade: compare-se o próximo e o distante naquilo de que temos conhecimento directo. O que aparecia como perfeitamente normal num certo momento, surge, num momento posterior, como eminentemente inaceitável. E não me estou a referir apenas aos delírios do chamado “politicamente correcto”: estou-me a referir a certos tipos de crenças que são partilhadas pela quase integralidade da sociedade e não apenas por aqueles que vivem na perpétua agitação das “causas”.
Um exemplo tão bom como outro qualquer é o da nossa relação com os animais, tanto os animais selvagens como os destinados à nossa alimentação (o caso dos animais domésticos talvez seja diferente). Há um abismo entre o que era a sensibilidade comum, pelo menos a sensibilidade comum vocalizada, de há, digamos, quarenta anos e a de hoje. E é sem dúvida possível traçar os momentos da evolução que vai do passado ao presente, dominado pela discussão dos “direitos dos animais”. (Já agora, a boa posição no capítulo parece-me ser a de Kant. Dada a associação dos direitos à ideia de contrato, e não se podendo falar de contratos com os animais, não há propriamente falando “direitos dos animais”. O que há é um dever indirecto para connosco de não tratar mal os animais, porque fazê-lo é uma violação da humanidade em nós.) A história do leão Cecil morto pelo dentista americano no Zimbabué (um país que não prima propriamente pelo respeito dos direitos dos humanos) e repetida vezes sem conta na televisão nestes últimos dias exibe isso de forma caricatural. Digo “caricatural” pela forma da coisa. A minha simpatia vai toda para o leão e, dada a semelhança de muitos rostos humanos com os focinhos de certos animais, aconselharia até alguma prudência aos clientes do dentista.
Mas voltemos às condições invisíveis num sentido mais geral, para lá deste exemplo particular. São elas que determinam o que faz sentido para as sociedades. A boa velha questão de Montesquieu – “Como se pode ser persa?” – continua a ser a verdadeira questão. A investigação das condições invisíveis parece ser a boa maneira de capturarmos, na medida do possível, a experiência concreta da vida dos povos do passado, determinada pelos seus sistemas de crenças. Pese a muitos historiadores, é difícil imaginar grande história sem uma certa dose de revivescência do passado, trazendo à luz o modo como aqueles que no passado viviam o viam. A descoberta das formas de existência inumeráveis dos humanos ao longo do tempo, os modos como se pensaram a si mesmos, é, para o leigo, a coisa mais fascinante da história. As cidades, Platão já o sabia, formam caracteres distintos. Compreender como é que diversas sociedades criaram para si valores específicos a partir dos quais o seu mundo fazia sentido e como esses valores e esses sentidos eram específicos a cada sociedade e pouco comunicavam com os valores e os sentidos de outras sociedades, é isso que mais interessa. E por vezes a tarefa reveste-se de uma necessidade prática absoluta. É notoriamente o caso do islamismo contemporâneo, para lá do que há nele de puramente criminoso, sem cláusulas nenhumas. É de efectiva alteridade que se trata. Não há entre nós e os islamistas simples “diferenças”. Há um abismo entre dois tipos de condições invisíveis.
Isto pode parecer parente de algum relativismo. E, num certo sentido, é-o. Não há provas em matéria de concepções da sociedade, como não há provas em matéria moral. As condições invisíveis, ao contrário dos riachos, vale a pena repeti-lo, não se deixam medir. E os canibais também obedecem a condições invisíveis. Mas há argumentos, e os argumentos não são todos equivalentes: alguns pesam mais do que outros. Mais importante ainda, a tradição que chamamos ocidental desenvolveu uma reflexividade, uma capacidade de distanciamento para com o seu sistema de crenças, que é, paradoxalmente, a via para o universalismo possível, na medida em que permite exactamente pensar a alteridade sob uma forma que não é a da medição. E pensá-la a partir da nossa própria maneira de pensar, a partir das nossas próprias condições invisíveis. O distanciamento não anula essa capacidade. Não é a reflexividade, é a transformação desta numa hiper-reflexividade auto-destrutiva, que conduz ao verdadeiro relativismo e nos deixa sem pé, à mercê das condições invisíveis dos canibais, impedindo-nos de lhes podermos dar, prudentemente, alguns conselhos.
Moral da história. Convém prestar atenção aos riachos. Podem significar incalculavelmente mais do que julgamos.