Os Portugueses ainda estão indignados com a quantidade de Portugueses que não levam o confinamento a sério e andam na rua a fingir que têm razões para isso. Felizmente, esses Portugueses estão a conseguir fazer sentir a sua indignação a estes Portugueses, uma vez que são exactamente os mesmos Portugueses. Em linguagem matemática chamam-se conjuntos iguais. Em linguagem normal chamam-se sonsos do caraças.

Viu-se no sábado, quando o Presidente da República, à saída de um lar que visitou antes de saber o resultado do teste que a DGS o mandara fazer, repreendeu o povo por interpretar com latitude excessiva as excepções ao confinamento. Uma repreensão. Num lar. Sem saber o resultado.

É inegável que há uma diferença abissal entre a forma como estamos a encarar este confinamento e a forma como encarámos o confinamento do ano passado. Em 2020 estávamos em casa, em 2021 estamos a voltar para casa. Pelo menos, é a desculpa que damos à GNR, se nos interpela. A tese geral é que a diferença se deve a termos perdido o medo ao bicho, daí borrifarmos nas regras. A verdade é mais prosaica. A grande diferença entre os confinamentos é que o de 2020 foi na Primavera e este é no Inverno – e um Inverno particularmente fresco. Uma coisa é ficar em casa com temperaturas normais, outra é ficar em casa com o frio que tem estado. É que, com o preço da energia em Portugal, um em cada cinco Portugueses não consegue aquecer a casa. Obviamente, ninguém quer estar enfiado no equivalente habitacional à Sibéria. Por isso, o confinamento não funciona: não é que tenhamos deixado de tremer de medo, passámos foi a tremer de frio. É o confriamento.

Por essa razão é que os Portugueses, mesmo podendo ficar em casa, vão para o escritório, que tem ar condicionado. Teletrabalho é giro, geletrabalho é aborrecido. E vão fazer o passeio higiénico ao Sol, depois vão à farmácia, depois ao supermercado, vão à missa, a seguir marcam uma escritura, renovam a carta de condução, vão à mesquita, vão esterilizar o gato, vão levantar dinheiro ao multibanco, vão à sinagoga, vão ao banco depositar o dinheiro que levantaram, vão fazer um seguro, vão enviar uma carta. Invocam as excepções todas que implicam estar em sítios com aquecimento.

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Tudo para não ficarem em casa e serem obrigados a ligar o aquecedor a óleo, que carrega forte na conta da luz. Os que o podem ligar, claro: os Portugueses que, em 2018, na sequência de queixas sobre o preço da electricidade, seguiram o conselho do Ministro do Ambiente e contrataram uma potência mais baixa, não conseguem ligar um aquecedor. Quer dizer, conseguir, conseguem. Mas para isso têm de desligar a placa do fogão, a televisão e o frigorífico. Quer dizer, em rigor nem precisam de frigorífico.

É o preço a pagar pela transição energética. Os Portugueses estão a transitar da energia preta para a energia verde. Ou, se forem Portugueses pobres, para a energia roxa: a cor com que fica quem não tem dinheiro para pagar a maravilhosa electricidade renovável. Para esses Portugueses vive-se mais a transição energélida: mudar de energia que aquece para outra que não se consegue pagar.

Só no último mês, chegaram-nos três facturas da descarbonização. Além das casas frias, houve o bambicídio (e desmatamento) na Torre Bela para instalar uma central fotovoltaica e houve o encerramento da refinaria de Matosinhos, com o consequente despedimento colectivo. Até agora, parece ser um valor que se paga de bom grado para atingirmos a sonhada neutralidade carbónica em 2050. Sucede que isto é só a entrada da primeira prestação do sinal. Ainda vai ser preciso desembolsar bastante para chegarmos lá. Quanto? Boa pergunta. Mas também inútil pergunta, uma vez que isto é Portugal e nunca ninguém faz as contas ao custo de nada.

Felizmente, já houve um país que as fez e sabe quanto vai custar atingir a neutralidade carbónica em 2050. E não é um país qualquer, é o país do momento, uma vez que é governado por uma Primeira-Ministra e está a saber lidar com a Covid. Em 2018, o Ministério do Ambiente da Nova Zelândia publicou um estudo sobre os impactos económicos das metas de emissões para 2050. Aparentemente, os neozelandeses não têm um António Costa e Silva que diga que tudo é “fundamental”, “essencial” e “fulcral”, substituindo a necessidade de uma rigorosa avaliação de custos por onirismo.

Segundo o estudo, a neutralidade carbónica até 2050 vai custar aos neozelandeses cerca de 16% do PIB. Uma vez que a Nova Zelândia é o país menos corrupto do mundo e Portugal está em 30º nesse ranking, para transpor para cá temos de somar mais 4% ou 5% em moscambilhas diversas. Portanto, se queremos atingir a neutralidade carbónica em 2050, contemos com pagar anualmente uns 20% do PIB. Como termo de comparação, em 2019 o Estado gastou 4,5% do PIB em Saúde, 3,5% em Educação, 6,6% em Acção e Segurança Social e 1,6% em Segurança e Ordem Pública. Ou seja, podíamos dobrar o que investimos nestas rubricas, mas optamos por adquirir ventoinhas, painéis solares, maquinaria para fabricar hidrogénio verde e outros brinquedos que nos tornam, aos olhos dos nossos vizinhos, os pobretanas mais bem artilhados da Europa. No fundo, somos um mendigo que transporta molhos de cartão num carrinho de mão adornado com aileron e luzes iguais às do Kitt.

Vamos investir um quinto da nossa riqueza para termos energia mais cara e menos fiável. É pagar para empobrecer. Em troca, em 2100, a temperatura não vai ser dois graus mais quente do que em 1850, mas sim apenas 1,97°. Se isto não é uma pechincha, não sei o que será. Não vamos poder acender a luz de casa, mas o que vale é que não vamos precisar: o sorriso orgulhoso de quem ajuda a salvar o planeta bastará para iluminar a sala! Partindo do princípio de que temos dinheiro para arranjar os dentes, claro.

Não é de agora que é má ideia fazer sacrifícios excessivos para tentar controlar o clima. Quando se preparava para atacar Tróia, Agamémnon mata uma corça sagrada da deusa Artemisa. Irritada, a deusa amaina os ventos, não permitindo que os barcos gregos partam de Áulide, onde se reuniram. Para aplacar Artemisa, Agamémnon sacrifica a própria filha, Ifigénia. O vento lá aparece e os barcos zarpam. Agamémnon destrói Tróia e, ao regressar a casa, é morto pela mulher, Clitemnestra, que ainda não tinha digerido bem a perda da filha. Clitemnestra, por sua vez, é morta pelo seu filho Orestes, que vinga a morte do pai. Daqui tiram-se duas ilações: 1) deve-se pensar bem antes de sacrificar algo de valor a um ser sobrenatural que, dizem, controla os elementos, pois as consequências podem ser desagradáveis; 2) os Natais nesta casa deviam ser giros.