São abundantes os estudos científicos que evidenciam o caráter transformador da educação. Nas nossas formações de Ciências da Educação, no contexto de ensino superior, contactámos com múltiplos autores/as e docentes que nos permitiram ver a sua capacidade de mudança do mundo, esse “segredo do aperfeiçoamento da humanidade” que Immanuel Kant um dia terá citado. A educação permite a libertação, a empatia e a fabricação de ferramentas para o desenvolvimento de uma maior cognição e para a produção de cidadania, possibilitando um elevador social àqueles que, sem ela, dificilmente entrariam e se deslocariam nele.

Não obstante, a educação nem sempre se revela como um dos pilares da criação de melhores condições de vida. Bourdieu e Passeron, nos inícios dos anos 1970, na sua obra A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino, fundamentaram muito bem o poder que a educação e a instituição escolar imprimem na conservação e cristalização de desigualdades sociais.

A instituição escolar é um elemento constitutivo da produção de violência, na medida em que pode contribuir para a reprodução de desigualdades sociais. Valorizando o domínio de aprofundamento da autora deste artigo, e, também, a sua importância na atualidade social, política e mediática, é esta uma das temáticas que pretendemos aprofundar – a violência de género.

A violência, particularmente a de género e a doméstica, tornou-se uma preocupação pública e tem sido tema de debate, não só nos media, mas também nas escolas portuguesas. Trata-se de um problema social, educacional, estrutural e político, uma vez que atenta contra a dignidade humana e põe em causa a vida em sociedade impedindo, assim, o progresso da justiça social e dos valores democráticos.

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Em Portugal, de acordo com a APAV, as últimas estatísticas (2022) de crimes de violência apontam para que mais de ¾ das vítimas sejam mulheres. Indicam ainda que, de todos os crimes, a violência doméstica é o mais comum – 77,4% – encontrando-se com um nível de prevalência muito superior aos dos dois outros crimes mais comuns (Ofensas à integridade física – 2,6%; Perseguição/Stalking – 0,9%), quase sempre partindo de homens sobre mulheres. No caso dos/as adolescentes e jovens em particular, a GNR registou, só no ano passado, mais de 1400 crimes de violência no namoro, nos quais 244 das vítimas eram pessoas com até 24 anos e a maioria eram mulheres.

Tendo este cenário como pano de fundo, importa pensar e percecionar a educação como um elemento de transformação social e, nessa lógica, a escola como um espaço privilegiado e um contexto social específico para o desenvolvimento de estratégias de prevenção primária, que promovam nos/as jovens novos valores, novas formas de pensar e novas formas relacionais visando relações saudáveis e pacíficas. Mais ainda, a educação tem, também, como função munir os/as crianças, jovens e adolescentes para o exercício de cidadania a partir do usufruto de todos os direitos e deveres que lhes assistem e assistirão enquanto adultos/as no futuro.

Compreendemos que a educação poderá ter dois lados: a fonte para as desigualdades e a violência; ou a chave para a sua erradicação, dependendo do caminho que lhe for designado. Assim sendo, se por meio da educação as crianças, adolescentes e jovens assimilam inúmeras representações hegemónicas machistas, também acreditamos ser possível, por meio da educação, desconstruir essas representações e (re)construir novas representações sociais mais democráticas.

A violência de género encontra-se intimamente ligada à construção social e cultural do masculino e do feminino, enraizado num sistema patriarcal, reproduzindo, assim, assimetrias no que concerne a oportunidades, direitos e deveres, crenças e práticas, a partir desta atribuição de papéis desiguais a homens e mulheres, meninos e meninas. Compreendemos que, desde cedo, são incutidas nas mentes dos/as mais novos/as, conceções e pensamentos sobre a construção social das representações de género, ressaltando uma realidade infundada sobre o domínio do homem sobre a mulher, nas mais variadas esferas da vida.

Nesse sentido, urge promover a construção de novas representações e de novas práticas sociais, a partir de intervenções que providenciem a igualdade de género e incentivem uma cidadania plena, rumo a uma sociedade fundamentada numa cultura de justiça e de paz. Percorrendo este caminho, ao estabelecer relações sociais baseadas na solidariedade, reciprocidade e igualdade nas dinâmicas relacionais, será possível encontrar novas formas de (con)viver com as diversas expressões de feminilidades e masculinidades.

Importa, assim, envolver esforços para criar espaços e tempos na escola para trabalhar princípios, comportamentos e valores no combate das desigualdades, educando para a cidadania global, direitos humanos e igualdade de género. A instituição escolar é um espaço de interesse pedagógico e social para a implementação de estratégias de prevenção de violência de género, uma vez que aloca uma população docente e discente heterogénea.

Acreditamos ser crucial que educadores/as, professores/as e toda a comunidade educativa envolvida na vida dos estudantes aprenda e absorva competências e estratégias capazes de reconhecer e prevenir a violência. Por conseguinte, é necessário criar forças na redução da violência de género antes de ela emergir a partir da implementação e corporização de ferramentas de prevenção primária.

A prevenção primária objetiva a intervenção antes da manifestação do problema e, por conseguinte, tem como propósito evitar o surgimento de novos casos de vitimização e perpetração, através do aumento de conhecimento sobre as causas e consequências, do trabalho de atitudes de respeito, com a esperança de que influenciarão a mudança de comportamentos problemáticos, neste caso, os de violência, assim como as crianças, jovens e adolescentes estarem providos de estratégias para lidar com situações de violência.

É, assim, com este sentido de urgência interventiva, que destacamos a importância da implementação de programas e/ou projetos de prevenção primária, sempre articulados com a prevenção secundária e terciária para que a mesma seja eficaz, atuando tanto no âmbito do empoderamento de meninas, raparigas e mulheres, como na desconstrução e combate das masculinidades tóxicas junto de meninos, rapazes e homens, rumo à transformação das relações e (re)criações entre o género masculino e feminino.

Com este desenvolvimento estratégico-reflexivo em mente sobre atribuição social de papéis de género, poderão ser usadas ferramentas e estratégias a partir de filmes, livros, música, pinturas, desenhos animados, jogos educativos. É igualmente importante, através de um trabalho colaborativo, promover formas de ser e estar, pensar e fazer, que se apresentem como inversas à discriminação e violência, estimulando o seu espírito crítico face às injustiças.

Estas constituem algumas medidas a partir das quais os atores educativos podem empreender esforços na construção de contextos e práticas escolares mais seguros, respeitadores da diferença e contempladores da justiça de género. Porque a educação modifica os seus aprendizes, torna-se necessário igualmente transformarmos a própria educação, no sentido de esta interpelar os casos de discriminação de género entre crianças e jovens e contribuir para um mundo mais focado no valor equitativo de toda a pessoa humana, independentemente do sexo com que nasce e que é auto e heteroatribuído.

Pensámos ser crucial considerar o impacto (positivo) que as crianças, adolescentes e jovens podem ter ao inspirar as futuras gerações e colaborar, coletivamente, na construção de um trabalho organizado, integrado, coordenado e sistemático, envolvendo diversos elementos da comunidade educativa (alunos/as, professores/as, auxiliares educativos/as, famílias, etc.) que ofereçam propostas mais consistentes para que os/as mesmos/as sejam protagonistas da mudança social e garantindo, assim, que as suas vidas sejam (mais) felizes.