1. Naquele longínquo ano de 1998 quando de súbito nos encontramos lado a lado no mesmo voo rumo ao Brasil, o meu vizinho estaria certamente longe de supor que vinte anos depois, protagonizaria forte surpresa na politica portuguesa. Nesse dia, Luís Filipe Castro Mendes voava placidamente para o Rio de Janeiro para se ocupar de um novo exercício diplomático, o de cônsul de Portugal no Rio.

Se eu já estava nas estava nas nuvens, subi mais um patamar com a notícia. O Luís Filipe Castro Mendes era alguém que eu conhecia, lia, apreciava muito e com quem me encontrara em alguns dos países onde ele servira como diplomata. (Como nesse jantar na sua casa em Paris, quando aí se encontrava em posto e onde, face às eleições presidenciais francesas realizadas nesse dia, um dos convivas, Melo Antunes, diante do écran da televisão, pugnava com um empenho silencioso pela derrota da direita enquanto mais loquazmente, eu torcia pelo fracasso da esquerda…).

Voltando ao Brasil: como nada acontece por acaso (não, não há coincidências) o baptismo do novo cônsul foi um surpreendente fogo de artifício: no dia seguinte ao da chegada do Luís Filipe, nos belos jardins do Museu da República do Rio, ocorria o lançamento do livro que eu fizera com Mário Soares, com o próprio Soares “himself” (no auge da sua forma e da sua glória), rodeado de um suculento lote de nomes da política, da literatura, das artes, da música, do jornalismo, do humor, numa absolutamente irresistível mistura de festa, espírito e génio que faz do Rio de Janeiro uma paisagem intelectual e cultural única na América Latina e rara no mundo.

No extraordinário jantar que se seguiu onde a produtora cultural Renata Lima nos reuniu a todos em sua casa, em lauta e vibrante ceia, Luís Felipe Castro Mendes, pôde conhecer e privar com todo este belo mundo. Iniciando aí mesmo e nessa noite uma aventura diplomática mas também política, também cultural, também humana. E duplamente feliz: para ele, mercê do entendimento que teve da importância da sua função (o consulado de Portugal no Rio é uma “embaixada”) e do modo como ela deveria, e não por acaso, ser exercida ali no Brasil. E feliz para todos esses – incontáveis e transversais – brasileiros e não só cariocas, a quem o cônsul abriu o Palácio de S. Clemente. De cada vez que eu lá ia e foram muitas nesses anos, pude constatar a fina evolução daquela diplomacia acertadamente abrangente, sem arestas, nem passos em falsos. E observar ao vivo, como no coração do Rio de Janeiro, se ia celebrando – proficuamente, inteligentemente, lucidamente – um verdadeiro intercâmbio entre Portugal e o Brasil. Coisa sempre tão evocada mas ali não em vão.

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Não me admirei por isso quando há dias, conhecida “de supetão” outra noticia – a da sua escolha para titular a Cultura – começaram a aterrar do Rio, emails e “sms” em português cantado: “é mesmo ele?”; “você pode me enviar seu celular…?”; “olha diz pra ele que a gente tá mandando um abração”.

Não estranhei, não. Do outro lado do oceano o consulado fora naquela lonjura uma verdadeira casa de Portugal, bem “administrada” e bem frequentada. Deixara saudades e o seu anfitrião, poeta inspirado, sensível, melancólico e cidadão afabilíssimo, deixara viva memória.

Não julgo que os dias no Palácio da Ajuda lhe possam hoje ser fáceis nem fluidos. O meio não se comoverá com a delicadeza das suas boas maneiras e não se sabe se os grãos de sabedoria que adubaram a sua carreira encontrarão aqui solo adequado na complexidade da empreitada.

Seja como for, desejo felicidades a um cidadão muito decente.

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2. Todos os sinais vermelhos estão acesos com o Brasil, em plano inclinadíssimo, suspenso de um impeachement que é um terrível dois-em-um: não tem fundamentação politica sólida e nada resolverá. Mas despedaçará – ainda mais – os já de si periclitantes pilares das instituições brasileiras. Resolveria sim, se mais de metade da classe politica, suspeita de corrupção e abuso de poder, fosse igualmente “impedida” de seguir viagem na politica. Embora rindo ou sorrindo mas eu temo que fosse a sério, diziam-me no Brasil que “por menos que esta pouca vergonha vigente, há meio século os militares tinham ocupado a cena politica”. Sucede que vertigem do impeachement (que em nada é comparável, sublinhe-se, ao de Collor de Melo), assumiu uma proporção tal que corrói mentes e transtorna as percepções. Como a principal de todas elas que é achar que caso o impeachement seja aprovado ele trará consigo gente mais despoluída ou sequer melhor gente para o palco. Não me parece. A curto e médio prazo, pelo menos, o gesto não resolverá, não apaziguará, não melhorará. Pelo contrário.

Dizem-me: tudo é melhor que a dupla Dilma/Lula, só que não há “tudo”: a oposição que dá por esse nome não só está também ela maculada pelo pecado da corrupção, como ninguém minimamente sério vislumbra hoje nas fileiras das várias oposições credibilidade, poder, convicção, projecto, viço quanto baste para seguir com o Brasil às costas. Aécio Neves, líder do PSDB já conheceu certamente melhores dias que os de hoje, carregados de hesitações e debilidades. Michel Temer, vice-presidente, a contas também ele com problemas no Tribunal Superior Eleitoral – homem habitualmente cortês e ponderado exibiu modos que nele destoam, colecionando ultimamente alguns passos em falsos.

Lula, sempre ele, sempre em pé, balançando entre a habilidade, a intuição e o despudor, “aguenta” o governo de Dilma em parte da opinião publica e nas hostes do PP e enquanto isso (que não é pouco), arregimenta sem desfalecimento votos contra o impeachement, cujo desenlace será em breve conhecido. Diz-me quem sabe, que o presidente do Supremo Tribunal Federal, Lewandovsky, se bate contra gregos e troianos para manter a “coesão “do seu (dividido) Tribunal, afligindo-se com a desenvolta loquacidade de alguns juízes com a imprensa… E se as últimas sondagens dão hoje uma significativa maioria favorável ao impeachement da Dilma e do próprio Temer, amanha poderão não dar, o país transformou-se numa espécie de laboratório politico e Lula continua a ser o líder político mais votado.

O Brasil está dividido, os partidos estão divididos, os juízes estão divididos, a sociedade está dividida. A condizer, levantou-se um muro para dividir o povo que no próximo fim de semana se manifestará “pro” e ou “contra” impeachement.

Tudo enfim com muito má cara. E sem solução?

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3. Quando os amigos íntimos deslizam da esfera privada para a pública e ocupam – sem voto, nem mandato – a política, o poder e o Estado, pergunta-se : e porque ocorre isto? António Costa não confia nos seus colaboradores “oficiais”? Confia tão pouco em ministros, secretários de Estado, deputados, conselheiros, assessores, que prefere alguém – não eleito, nem sequer nomeado – de fora do jogo politico e das suas regras para negociar (?) em seu nome? Mas não é o chefe do Governo o representante e o garante dessas mesmas regras? Fala-se em ordenados e cifras financeiras, exige-se saber quais são e quanto ganha o amigo do primeiro-ministro. Não me parece ser esse o “ponto” nem isso o que mais interessa mas sim a estarrecedora e sorrateira entrada em cena desta “figura” e como chamá-la? Alguém sem “estatuto” na estrutura democrática, mas omnipresente e omnipotente na negociação – longe de nós – dos mais delicados dossiers do Estado português não é facilmente encaixável nos compromissos e preceitos das democracias. Dos quais o primeiro-ministro devia cuidar, aos quais devia atender e face aos quais nos ensinaram que tínhamos primeiro de os respeitar e depois de os cumprir.

Ou tudo isto é uma história pessimamente contada ou em mais de quarenta anos não me lembro de nada de sequer parecido.