Desde há mais ou menos um mês, circulam nos media artigos sobre o discurso de Mallory McMorrow, no Senado do seu Estado, que são acompanhados pelo vídeo desse discurso – o último deles está no The Guardian de hoje. [22.05.2022]

A história conta-se rapidamente. Mallory McMorrow, de 35 anos, é senadora pelo Partido Democrata, no Senado do Michigan. Num e-mail de angariação de fundos, a sua rival do Partido Republicano, Lana Theis, recorreu ao que tem sido normalizado por este partido, isto é, às mais infames insinuações que visam o assassinato de carácter; à polarização da discussão política pública; à subversão e aniquilação dos processos democráticos. Acusou-a de sexualizar as crianças e de ter o comportamento característico de um pedófilo no processo inicial de manipulação de uma criança com o intento de abuso sexual. Ou seja, recorreu à conspiração de pedófilos Democratas no poder veiculada pelo QAnon e a alt-right como substrato para a suspeição lançada. E fê-lo com a acrescida perversidade de se poder já ser pedófilo por conivência com as matérias leccionadas nas escolas, as equivalentes à nossa «Educação para a Cidadania», ou só pela defesa dos direitos das minorias, inclusive da minoria LGBTQ+.

A normalização desta forma de estar na política não é inocente. Insultos, suspeições, ameaças, mais ou menos veladas, são formas de intimidação. Populismo, polarização, pós verdade – os 3 «p» de Moisés Raím – visam a desconstrução democrática. Uma escola que, infelizmente, tomou conta daquele que foi um dia o partido de Lincoln e progressiva e fratricidamente, após a queda do Muro de Berlim, se tornou o partido de Buchanan, Bannon, Trump. Este novo capítulo do Partido Republicano é a história do triunfo do populismo nacionalista ao qual se submeteram as elites conservadoras do partido tanto quanto a ele aderiram os democratas brancos, de baixa escolaridade e baixos rendimentos, dos meios rurais, numa fatia demográfica total de 59%. Assim mesmo, apesar da subversão do partido, Trump é um previsível candidato à presidência em 2024.

O espaço que se cede aos bárbaros, traz a barbárie. Só um bárbaro usa o argumento de que qualquer desvio à supremacia branca e heterossexual, a homossexualidade, por exemplo, é pedofilia. Só um bárbaro recusa a igualdade de direitos daqueles que são minorias pela razão de serem minoritários. Não é conservadorismo. É ódio. Quando Mallory McMorrow, uma mulher branca, heterossexual, católica, casada, mãe, politicamente activa, defende os direitos das minorias e não aceita fazer do cristianismo uma arma de arremesso contra essas minorias, aos opositores que visam a aniquilação de qualquer diferença, só resta a infâmia. Mas desta vez, a infâmia teve a resposta adequada. Simples e adequada.

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Porque defender a legalização do aborto, como ela o fez também, não é ser a favor do aborto – mas quem é que é a favor do aborto? Ninguém, nem quem o faça. Tal como ser contra a legalização do aborto não é ser pró-vida. A favor da vida somos todos. As questões são inteiramente outras. Proteger os miúdos homossexuais, ensinando que a homossexualidade é normal, não é promover a homossexualidade. Há uma enorme diferença entre isto e a agenda woke – que me parece muito bem caricaturada no humor do agora vilipendiado a caminho do cancelamento Ricky Gervais. Uma diferença tão grande quanto a diferença entre o centro direita moderado e a direita nacionalista.

Os factos permanecem: a democracia está em recessão pelo 16º ano consecutivo. Não apenas nos países que se intitulam democracias iliberais, coisa que é uma contradição em si mesma, mas nos países democráticos onde o tecido político-social está minado pelas disparidades económicas; pela ausência de representação política de facto; pela polarização; pela cisão social; pelos fluxos migratórios descontrolados; pela perda de direitos adquiridos.

Autocracias e cleptocracias, lideradas pela Rússia e pela China, abrem caminho por entre as democracias que identificaram como ameaça ao seu poder, através da subsidiação de todas as formas de fragmentação social, com a complacência dos indiferentes, e com o apoio daqueles que no espaço público se subtraem à discussão política para somarem ao ataque pessoal.

Os factos permanecem: a prosperidade vem com a democracia. Os regimes fascistas e comunistas geraram a pobreza de milhões, a exploração mais vil, a perpetrada pelo próprio governo. A segurança vem com a democracia: os regimes fascistas e comunistas mataram milhões, aprisionaram, torturaram.

As autocracias e as cleptocracias promovem a corrupção, a injustiça e a impunidade dos governantes, familiares e associados, e dos Estados seus aliados.

Quando esta alt-right, ao serviço de autocratas e cleptocratas, defende America First ou França para os Franceses ou os Portugueses de Bem, está, no mínimo, a fazer a defesa do isolacionismo que facilitou o fascismo a pretextos securitários e identitários. Quando esta alt-right fala de civilização é só para não ter de falar de direitos humanos e de democracia.

A alt-right, e o woke, em movimentos reactivos opostos, estão a destruir as democracias e fracturar as instituições que lhe servem de rede e coluna.

Diante disto, é uma boa ideia fazer parte do grupo daqueles que já perceberam que a democracia está a ser atacada, que a alt-right e o woke são anti-democráticos, e que contra-atacar ambos dignificando o debate e a acção política, reforçando os processos e as instituições democráticas é a única resposta adequada. Obrigada, Mallory McMorrow.

A autora escreve segundo a antiga ortografia