As “desconstruções” sucessivas a que no último século se entregaram numerosos pensadores ocidentais tiveram como resultado a obnubilação nos espíritos da noção de “sentido”, noção que significa simultaneamente direcção e significação. Tornou-se urgente reconstruí-la; se assim não for, o que há de melhor na nossa civilização perecerá.  (Jean Delumeau, Mil Anos de Felicidade)

1 Vale a pena formular algumas declarações prévias de “interesses” ou princípios de partida?

Não deveria ser preciso. Nem sequer qualquer prévio esboço de captação de benevolência do eventual leitor e seu sempre desejável espírito crítico. Pela simples razão de que não é costume que alguém peça licença para usar direitos de cidadania e de raciocínio. Ainda assim, aqui deixamos previamente consignada a nossa democrática impaciência para ver em efémeros pingos de tinta impressa, em croniquelhas de circunstância ou em vociferações comicieiras de feira, barbaridades vulgares, insultuosas do magistério de tantos homens de ciência que, com credenciais firmadas em morosa e profícua investigação e reconhecimento académico, têm de suportar iconoclastias de supina ignorância, rasteiro saber ou confrangedora falta de senso comum. Em matéria de História da expansão e descobrimentos um Charles Boxer, um Luís Albuquerque, um Luís Filipe Thomaz, entre tantos outros historiadores passados e do presente, na obra por si erguida valem felizmente, infinitamente mais atenção do que as laudas de papel destes imprevistos e derradeiros órfãos de Maio 68  e da queda do Muro de Berlim, que, com duas ou três consultas de Wikipédia e muita cartilha ideológica de dialética fraturante, entre nós se vão acomodando à função de putativos doutrinadores indígenas. Que admira se nas suas onagradas “desconstruções” (só pode fazer história da história quem conhece a primeira!), verdadeiras tentativas de lesão a quase todo um património científico e cultural historicamente consagrado, o «Imperador da língua portuguesa», missionário idealista, patriota e notável diplomata da Restauração, recebe especiais deferências dos energúmenos? Mesmo assim é – naturalmente – muito de espantar, e sendo que talvez não lhes devêssemos essa deferência, sempre nos acomete certa vergonha pelo dislate alheio.

No seu tempo, o grande e agora tão absurdamente negregado Padre António Vieira assistiu – por vezes algo solitariamente – a verdadeiros desconcertos que rebateu a cara descoberta e cujos ecos transparecem na sua epistolografia. Entre tantos, o funcionamento, fácil aceitação e credibilidade social coevas do sistema processual do Santo Ofício português, a manipulação clerical da crendice fácil e beatice das turbas populares, ávidas de novas sensações e novidades espirituais, e a própria diplomacia da corte romana “na qual a razão do ministro se med(ia) pela potência do príncipe” que o enviava (Cartas, coord. e anot. por J. Lúcio de Azevedo, t. III, INCM, 1997, p. 560). Poderemos hoje considerar que, não obstante todas as aparências em contrário que lhe foi dado observar e viver, o Padre Vieira nem por isso deixou de se sentir e foi, realmente, um vencedor, um desbravador de futuro. Basta lembrarmo-nos quanto o pombalismo da Dedução Cronológica e Analítica (1767) o viria a denegrir enquanto jesuíta, mas – afinal –  nos alvarás de 1761, declarando os índios livres, e nos de 1771 e 1773, criando condições à eliminação da escravatura na metrópole, como efetivamente eram princípios seus que acabavam por triunfar. Como é sabido, ainda de 1773, ano da extinção da Companhia de Jesus por Clemente XIV, é a “piíssima lei” de D. José a acabar com a “sediciosa e ímpia” distinção legal entre cristãos novos e cristãos velhos, e de 1 de Setembro de 1774 o alvará régio de confirmação do novo Regimento do Santo Ofício da Inquisição, profunda reforma do tribunal que alargava substancialmente o mecanismo de defesa dos acusados e aproximava as normas processuais das do processo ordinário. A verdade é que este triunfo de um novo humanismo jurídico ilustrado acolhia a pertinência de objeções que António Vieira formulara uma centúria antes.

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Para crer na vitória dos seus valores, bastaram-lhe para isso o uso da reta razão, os ditames da sua consciência e da sua inabalável Fé, que tinha uma dimensão promissória de perfectibilidade histórica universal, intramundana e providencial. Hoc opus, hic labor est… Todavia também hoje, quem, na linguagem pessoana da Mensagem vá escrevendo “à beira-mágoa”, tendo seus “olhos quentes de água”, e a exemplo de alguns dos seus maiores queira reagir ao pântano moral da presente crise de consciência civilizacional europeia-ocidental, de idêntica fonte de energia se terá de abeirar…

2 Lê-se (e estranha-se) que o autor de um livro sobre um partido recente (de deputado único mas – de resto – plural falta de maneiras e impante triunfalismo) tenha sido publicamente admoestado por 67 intelectuais ciosos do que este deveria ter escrito e sobre aquilo que os consumidores da solícita comunicação oficial e oficiosa do establishment vigente deveriam entender do texto escrito, explícita e implicitamente! Tiques de “juízes tabaquentos da real mesa censória”? Mas, ainda muitíssimo mais deplorável, não é este o país em cujas escolas públicas, com subtração à legítima tutela da família, o Estado almeja por nos “reeducar” filhos e netos em sexualidades e cidadanias de desconstrução de valores?

Fazendo trabalho de casa, de parceria pactuada com governos canhotos de “geringonça”, toda uma “plêiade” de czares de borla e capelo, de eméritos “cientistas sociais”, proibindo o bifinho de vaca de cantina e anatematizando os horrores da tourada portuguesa, zelam hoje por reduzir a juventude escolar à piedade da santa fé laicista, aos dogmas do relativismo e do nihilismo. Com incomparável inflação de ridículo e insensibilidade à tragédia desencadeada, fazem hoje estes conspícuos mestres jus às tradições da “mamã dos bacharéis” do Álbum das Glórias, aos patrióticos tempos do reitor Basílio Alberto, de resto, em jovem, um estrénuo liberal e constituinte do nosso vintismo…

Joaquim Pedro de Oliveira Martins, apesar do seu excessivamente decantado pessimismo, não poderia supor aquilo em que futuramente viria a degenerar a “cauda arrastada do jacobinismo português”, hoje vigente!

O velho luso-tropicalismo teoricamente cunhado pelo sociólogo brasileiro Gilberto Freyre nos distantes anos trinta do século passado, entrou nos atuais tentames de “reeducação” pública (de “descolonização”, na expressão sectária de certo anarquismo sociocultural da presente fúria epidémica de doutrinação ideológica), como prato forte do variegado menu de mistelas enganosas de efeitos políticos previsivelmente vantajosos ao usuário.  Uma outra aproximação de ciência (sine ira et studio) e saberes académicos interdisciplinares era e é possível, conforme resulta evidente. Assim, há uma vintena de anos, excelente volume revisitava crítica e descomplexadamente o tema (AA.VV., Luso-tropicalismo: Uma Teoria Social em Questão, org. de Adriano Moreira e José Carlos Venâncio, ed. Vega, 175 pp.).

Apesar do seu valor intrínseco, apesar de profundamente interessada pela história, oferecendo pistas e problemáticas fundamentais para a renovação da história da colonização e da expansão portuguesa, apesar de a vasta e fecunda obra deste grande escritor e estudioso da lusofonia dificilmente se poder “acomodar sumariamente à axialidade de uma única teoria”, nem “o luso-tropicalismo ser passível de ser entendido apenas pela sua apropriação ideológica”, a verdade é que a bibliografia de Gilberto Freyre é relativamente invocada, mas, surpreendentemente, “continua a ser praticamente ignorada pela historiografia portuguesa” (op. supracit., pp. 70-71).

Sem mais, e sem qualquer outra remissão para textos e ensaios de e sobre a obra do sociólogo brasileiro, recordaremos simplesmente que na base do luso-tropicalismo está a ideia de que a expansão portuguesa se traduziu num processo social específico de intercurso cultural e de miscigenação, propícios à radicação do luso nos trópicos, criando uma realidade bem diferente da de outros povos europeus colonizadores, realidade facilmente reconhecível e que, entre os mais ilustres, um Orlando Ribeiro sublinhou eloquentemente (cf. nomeadamente Originalidade da Expansão Portuguesa, Lisboa, Sá da Costa, 1994).

4 Um ensaio historiográfico é tanto mais indispensável quanto mais ele dá voz aos personagens, aos testemunhos e aos documentos de uma época, sempre ponto de partida insubstituível.

Como é bem sabido, nas polémicas sobre o curso da história, António Vieira defendeu sempre, ufanamente, a cristianização universal como algo inscrito na missão providencial de Portugal, futura cabeça de um Quinto Império global, de paz, justiça e harmonia milenares. Por definição, a predileção divina por este “novo povo eleito” consagraria diferente forma de estar, a qual (ainda que Vieira somasse grandes restrições de exigência crítica à realidade social concreta, efetivamente vivida, com relevo para a reivindicação de uma maior integração racial e liberdade dos autóctones), deixaria – à partida – a experiência lusa nos trópicos muito ao largo, naturalmente, da experiência de outras potências colonizadoras, nomeadamente da sempre ameaçadora e rival Holanda. Não faltam exemplos dessa singular aculturação e miscigenação, entre tantos autores, em meados do século passado evocados por Hernâni Cidade, remetendo já, ao falar da ação missionária de Vieira nos sertões brasílicos, para o quadro social colonial transparecendo de Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre (A Literatura Portuguesa e a Expansão Ultramarina, Vol. II, p. 305).

Nestes tempos, em que os próprios dados do senso comum não parecem a coberto de impugnações impertinentes, valerá a pena recorrer a uma lógica racional, quase de silogismo simples.

António Nunes Ribeiro Sanches, o famoso reformador pedagógico e “oráculo das luzes pombalinas”, acerbo crítico do seiscentismo barroco e do sistema de ensino jesuítico, faz nas suas Cartas sobre a Educação da Mocidade (1760) o elogio do pragmatismo económico da colonização estrangeira por comparação com a portuguesa. Segundo o viajado e prestigiado homem de ciência, “o único objecto das colónias e das conquistas deve(ria) ser a agricultura universal e o comércio” e “somente os lavradores, os pescadores, os oficiais mecânicos, os professores das artes liberais deviam ser os legítimos habitantes das colónias, os senhores das terras, engenhos, moinhos, fábricas, casas e outros bens de raiz”, figurando uma colónia “no estado político como uma aldeia a respeito da capital”. Pelo contrário, segundo este autor, cada colónia ou conquista portuguesa “e(ra) um parto de Portugal, porque na Índia, por exemplo, se instituiu uma Relação, como a de Lisboa e com a mesma jurisdição e modo de processar; os mesmos corregedores e juízes dos órfãos, um arcebispo com o seu cabido composto de muito cónego para cantar, em um porto ganhado com tanto sangue para comerciar; um tribunal do Santo Ofício, enfim, um pequenino Portugal”. Desde modo – acrescentava –  parecia que Portugal, desde El Rei D. Manuel, não fizera mais “que parir outros reinos e desfazer-se para criá-los e conservá-los”, bem ao contrário do que tinham feito os romanos relativamente às colónias por si fundadas, bem como castelhanos, franceses, ingleses e mais nações dos tempos modernos relativamente aos seus domínios ultramarinos (edição de 1922, pp. 135 e 136).

Conhece-se, pela pena coeva e autorizada de um filósofo ilustrado, maior crítica à forma original, mas alegadamente antieconómica, da colonização portuguesa?

A contrario, bem situada, contextualizada e datada, essa crítica utilitária (à Bahia já em Quinhentos conferente de graus académicos à sua juventude escolar, ou a Goa que desde então se tornara realmente uma Lisboa indo-portuguesa), não constitui hoje, de certa maneira, um dos maiores elogios que se pode fazer ao esforço colonizador português e ao seu quid específico, no século passado bem captado por Gilberto Freyre?