O amor e o ódio estão na ordem do dia e não é por acidente que isso se vê melhor na televisão do que no resto. A televisão tende a simplificar as coisas até aos limites do possível e muitas vezes consegue-o quase para além deles. Por isso, tudo o que por lá aparece suscita emoções desproporcionadas. Aos berros ou sussurrante, a televisão procura apagar – em noticiários, em novelas e em programas de futebol – os meios-termos e a favorecer tudo o que é passional. Não digo isto para me queixar. Constato apenas que é assim. E ninguém é obrigado a consumir o produto oferecido, graças a Deus, embora convenha estar vagamente a par do que a casa gasta. Até para ter alguma noção do que por hábito e método sistematicamente lhe escapa, e que lhe escapa por o passional ocupar o espaço todo de que dispõe, ao ponto de tudo quase parecer uma caricatura da realidade e não uma qualquer via de acesso e contacto com ela.

Dois episódios recentes são ilustrativos disto, e têm justamente a ver com o amor e o ódio. Do lado do amor, temos o telefonema de Marcelo a Cristina Ferreira. Do lado do ódio, a conversa de Mário Machado com Manuel Luís Goucha. Comecemos pelo amor. Marcelo, através da “presidência dos afectos”, não pára de o exibir e de o reivindicar. Parece que Leonard Bernstein, que ambicionava o amor universal, terá dito ao compositor Ned Rorem que o seu desejo era ser amado por toda a gente, mas que tal era, é claro, impossível: não podia conhecer toda a gente. Marcelo parece não considerar esse obstáculo irredutível. Saído da televisão para a presidência, continuou à sua maneira na televisão. Ninguém o tira de lá, o que lhe garante uma quase sobrenatural forma de ubiquidade que é meio-caminho andado para a obtenção do amor universal.

Tal dádiva de amor, que levou Cristina Ferreira às lágrimas, procede, aposto, de um sentimento genuíno: o desejo devorante de ser amado por todos. O que, numa pessoa com a idade dele, tem algo de extravagante. É que, com o tempo, numa saudável harmonia entre a oferta e a procura, precisamos cada vez mais de ser amados por menos pessoas. Marcelo, aparentemente, não. Quer que Portugal inteiro o ame. E sabe que isso só pode ser realizado através da televisão. O que, sendo esta o que é, lhe convém também. A televisão precisa igualmente de amor como de pão para a boca. Ela e Marcelo foram feitos um para o outro.

Mas a televisão precisa também de ódio. E aqui entra a insignificante figura de Mário Machado, representante máximo da extrema-direita e do racismo nacional. Não vi a conversa com Goucha, que não interessa para nada. Assisti, no entanto, como toda a gente, às reacções. A indignação foi generalizada. O Público publicou um abaixo-assinado, com o título “O racismo e o fascismo não passarão!”, em que se censura a “legitimação do fascismo e das suas vozes” e se pede uma acção pronta do Estado e das suas mais elevadas figuras para que a coisa não se repita. Também aqui algo é surpreendente: o excesso. Tal como o excesso de amor de Marcelo, o excesso de importância dado ao pouco recomendável Mário Machado não deixa de ser significativo. Significativo, desta vez, da necessidade de sofrer por antecipação. Como se o advento de um novo fascismo estivesse por uns dias e fosse necessário mobilizar as massas para um árduo combate. O ridículo da coisa não tem nome e o tal de Mário Machado certamente que agradece a importância que lhe é deste modo concedida. Mas a televisão também precisa de figuras assim e de reacções assim. Precisa de amor – e precisa de ódio.

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Justa ou injustamente, a “conversa de taxista” ganhou o estatuto de forma original de comunicação. Adaptando-se aos tempos (através, por exemplo, da referência agora obrigatória ao “aquecimento global”), preservou, nos casos mais emblemáticos, as suas características essenciais, sendo uma das mais significativas a radical ausência de dúvidas e a veemência da crença. Por essa e por outras, desde há muito que sigo a política de nunca discordar de um taxista. Podem-me vir com a ideia de que as mulheres não deviam ter carta de condução ou que os drogados mereciam ser todos fuzilados que não me apanham a abrir a boca para contrariar. Um táxi não é o lugar recomendável para mostrar que uma qualquer particular detestação não revela forçosamente a ilegitimidade do que se detesta.

O problema está quando esse singular género conversacional, feito de amores e ódios radicais, toma conta de tudo. E já andámos muito mais longe deste triste estado de coisas. Dei o exemplo da televisão, e da reacção a ela, porque é o mais visível. Mas a formidável regressão das maneiras de pensar e dos modos de falar que os tempos presentes exibem, e a passionalidade concomitante a essa regressão, vão muito para além dela, inclusive na rigidez com que as oposições são pensadas e até no carácter parcialmente imaginário dessas oposições. Por exemplo, quando Manuela Ferreira Leite declara que prefere que o PSD tenha uma péssima votação nas próximas eleições a que seja um “partido de direita”, cai também ela, para minha grande tristeza, na conversa de taxista. É caricatural. Os portugueses atribuem muito menos importância do que ela pensa à “esquerda” ou à “direita”. Querem sem dúvida viver melhor, viver numa sociedade mais livre e mais justa, e estão dispostos a transitar de um campo para o outro se virem nisso benefícios. O resto conta pouco.

Mas a simples atenção a esse facto só é possível se abandonarmos a conversa de taxista. O amor e o ódio são experiências humanas universais, mas não devem ser experiências políticas. Sob a ameaça da conversa sobre a sociedade, sobre os seus males e os modos possíveis de os remediar, ser impossível.