A semana passada decidi fazer o balanço do que gastei durante o mês de Março. A trabalhar remotamente há um mês, esperava já um corte significativo nos meus gastos. Ainda assim, não estava à espera de uma diferença tão grande. Neste mês de Março, gastei quase metade (-47%) do que em Março de 2019, e um terço do que no passado mês de Fevereiro. O que me levou a questionar o impacto do isolamento nos hábitos de consumo dos portugueses.
A SIBS disponibiliza a SIBS Analytics, uma plataforma que permite a qualquer cidadão analisar, de forma agregada, os dados de consumo em Portugal. Com efeito, o montante total processado pela SIBS em Março de 2020 foi 17% inferior ao processado no mesmo período do ano anterior (com uma descida de 23% no número de transações). Estes números contrastam com a tendência de crescimento positiva que tem vindo a ser registada de ano para ano. O que mais podemos encontrar nestes dados?
Mais compras, mais perto
Muito se falou na comunicação social sobre a corrida aos supermercados. Supermercados sem papel higiénico, nem farinha ou fermento. Apesar de tudo isto, o número de transações registadas em super- e hipermercados decresceu 5% em relação a Março de 2019. No entanto, o valor médio das compras aumentou cerca de 8 euros quando comparado com o mesmo período do ano anterior. Ou seja, menos saídas, mais compras.
Contudo, alguns setores parecem beneficiar. Minimercados e mercearias de bairro registaram um aumento de 36% no número de transações e 61% no total de dinheiro processado. O comércio local (talhos, peixarias, cervejarias, etc) teve um aumento de 26% no número de transações e de 52% no valor processado. Ou seja, mais compras, mais perto.
Menos saídas, menos consumo
O estado de emergência foi declarado a 18 de Março, mas o impacto causado em alguns setores de atividade durante o mês de Março é já gritante. Postos de gasolina estão a processar menos 23% das transações, face a Março de 2019. Os setores da restauração e hotéis e alojamento local processaram metade das transações. O setor da roupa e acessórios foi dos mais impactados com a redução do número de transações em 64%.
Mas agora, que não podemos ir ao cinema, ao jardim, ao centro comercial, que alternativas temos?
Mais casa, mais Netflix
Os meus jantares de aniversário são agora via Whatsapp. O treino de ginásio é feito agora a partir de lives do Instagram. Os jogos de PS4 substituíram o Badminton no parque. As sessões de cinema são agora patrocinadas pela Netflix — o meu consumo aumentou cerca de um terço no último mês, face ao anterior. E parece que não estou sozinha, as operadoras de telecomunicações reportaram um aumento +45% na Meo e de +25% na Vodafone no consumo da Netflix na semana de 16 a 22 de Março face à semana anterior.
Não é apenas a Netflix que nos faz ficar agarrados à televisão. Houve um aumento de 32% no consumo dos canais de televisão na semana de 30 de Março a 4 de Abril face ao registado no mesmo período do ano anterior (dados da GfK/CAEM – EvoReporting). Os canais religiosos foram os que registaram um maior aumento nas audiências (55.7%). Ou seja, a procura de conforto na religião não cessa e ganha novas formas.
Há também as plataformas de jogos. De acordo com a Revolut, que tem cerca de 400 mil utilizadores em Portugal, a Steam Games (+241%), a Playstation (+136%) e Nintendo (+73%) foram as marcas que registaram um maior aumento no número de transações em relação ao mês de Fevereiro. Ou seja, mais tempo, mais televisão, mais jogos. A procura de fontes de entretenimento é uma clara tendência nestes tempos de isolamento social.
Menos abraços, mais amor
Mas mais entretenimento não basta. Como animais sociais que somos, na impossibilidade de dar abraços apertados, temos recorrido a apps para nos conectarmos.
Embora eu não tenha conseguido encontrar dados específicos para Portugal, o Facebook partilhou que nos países mais afetados pela pandemia o volume de mensagens aumentou em 50% e no WhatsApp e Messenger as chamadas de voz e vídeo duplicaram. Ou seja, os abraços têm que esperar, mas o amor não espera.
Até a procura de novas aventuras amorosas não cessa. As dating apps, como o Tinder e o OKCupid, estão a registar não só um aumento no número de matches e conversas diárias, mas também na duração média de cada conversa. Na Europa, o Tinder regista aumentos entre os 10% e 30% em relação a Fevereiro. Será esta uma nova etapa para os romances à distância?
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Não há dúvida que o novo coronavírus trouxe a disrupção do mundo como o conhecíamos. Vivemos tempos duros e de adaptação. É incerta a forma como vamos fazer o regresso à vida social e económica. Que mudanças e novos hábitos vieram para ficar?
Passaremos a comprar mais na mercearia do bairro? Passarão as empresas a investir mais em formas de trabalho remoto? Passará a cultura a vir cada vez mais em formato digital? Ou regressaremos lentamente ao que nos era familiar?
*Margarida Ruela é Diretora de Produto, na área de Inteligência Artificial, na Feedzai — empresa Portuguesa que combate o crime financeiro utilizando técnicas de inteligência artificial. Antes de se apaixonar por gestão de produto, Margarida trabalhou como Data Scientist e teve a oportunidade de colaborar com algumas das maiores instituições financeiras do mundo. Margarida tirou o mestrado integrado em Engenharia Biomédica, no Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa, e antes de se juntar à Feedzai trabalhou na Accenture.
O Observador associa-se à comunidade Portuguese Women in Tech para dar voz às mulheres que compõe o ecossistema tecnológico português. O artigo representa a opinião pessoal do autor enquadrada nos valores da comunidade.