É uma das frases políticas mais famosas de sempre. A 4 de junho de 1958, quando regressou ao poder na sequência de uma crise profunda na “Argélia francesa”, Charles de Gaulle subiu a uma varanda para proclamar, com os braços abertos: “Je vous ai compris!”. E prosseguiu: “Eu sei o que se passou aqui. Eu vejo o que vocês quiseram fazer”. Na verdade, as declarações de De Gaulle eram um bocado mais complicadas do que pareciam ao início, porque proclamavam uma empatia mas escondiam um plano, que terminaria pouco tempo depois com a independência da Argélia. Mas o ponto não é esse. O ponto é que, sendo os seus objetivos declarados ou dissimulados, De Gaulle tinha mesmo compreendido os “cidadãos” — tinha compreendido “o que se tinha passado ali” e tinha compreendido o que eles “queriam fazer”.

É essa capacidade de compreender os eleitores que distingue um político de, por exemplo, um notário. Sem ela, os governantes correm o risco de ir para um lado enquanto os governados vão para o outro. Esta semana, António Costa mostrou que pode estar a “descolar” do país, para usar a expressão de Marcelo Rebelo de Sousa. Perante as crescentes críticas da esquerda e da direita, do Norte e do Sul, de cima e de baixo à possibilidade de instituição e aplicação da figura do arrendamento coercivo (a que se soma também “uma nova geração de cooperativas”), o primeiro-ministro entrou numa espiral de incompreensão de que foi dando conta em várias declarações e entrevistas: primeiro, “achou estranho”; depois, declarou-se “surpreendido”; e, por fim, ficou “perplexo”.

Não pretendo, de maneira nenhuma, equivaler a política habitacional deste governo a uma tentativa de revolução comunista — a utilização de argumentos como esse mostram um desligamento da realidade tão grande, ou maior, quanto o de António Costa. Mas, com todas as enormíssimas distâncias entre uma situação e a outra, está tudo muito bem explicado num excerto célebre de um documentário sobre a ocupação da Herdade da Torre Bela, em 1975.

Nas imagens, um dos líderes revolucionários, Wilson Filipe, também conhecido por “Sabu, o Marinheiro”, tenta explicar a um agricultor crescentemente revoltado que, a partir daquele momento, “tudo é da cooperativa”, a começar pela ferramenta dele:
— Essa ferramenta é da cooperativa. Tudo isto é da cooperativa. Não é tua, nem é deste, nem é minha. É da cooperativa!
— É da cooperativa? E os outros que não trazem ferramenta nenhuma? A minha é que fica da cooperativa?
Notoriamente frustrado, “Sabu, o Marinheiro” pega na ferramenta do agricultor para se tentar explicar melhor:
— Dá-me licença? Isto tem o valor de 100 escudos. Vem para a cooperativa e a cooperativa dá-te 100 escudos. E isto já não é teu, é de todo o mundo.
— Pode ser muito bem, mas eu é que trabalho com ela e preciso de fazer amanhã trabalho naquilo que é meu, num bocadinho que lá tenho… Tenho que ir comprar outra? E depois essa outra fica a ser da cooperativa? E depois vou comprar outra e é sempre da cooperativa? Daqui a nada, também o que eu visto e o que eu calço é da cooperativa. Fica a ser da cooperativa e eu fico nu.
— Não ficas nu! Ficas com mais roupa do que a que tens!
— Não vejo isso, não vejo nada disso.
— Hoje, tu não compreendes nada, não sei porquê.

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Ao lerem esta transcrição e ao verem o vídeo, terão notado seguramente que, tal como António Costa, também “Sabu, o Marinheiro” entrou numa espiral de incompreensão: primeiro, achou estranha a reação do pequeno agricultor; depois, passou ao estado de surpreendido; e, por fim, ficou perplexo. O homem à sua frente “não compreendia nada” e ele “não sabia porquê”.

É como hoje em dia: os portugueses não compreendem nada do que o governo pretende com a ameaça de arrendamento coercivo e António Costa não sabe porquê. Mas é muito simples. Para perceber o que se passa à sua volta, António Costa só precisa de revisitar este episódio da nossa história recente. Vai ver que entende logo tudo.