Começa a surgir um mito na Europa: Macron e Merkel vão liderar a Europa numa harmonia plena. Após o “Merkozy”, parece que apareceu o “Merkron”. Foi neste contexto, de ilusões e mitos, que Juncker fez o discurso do Estado da União e António Costa deu a palestra inaugural no Colégio de Bruges.

Juncker proferiu um discurso politicamente forte, cuja maior virtude foi a defesa da unidade entre a “velha” e a “nova” Europa. Uma mensagem política muito importante numa altura em que se acentuam as divisões entre o “ocidente” e o “leste” da União Europeia. Cometeu, porém, dois erros. Fez propostas, como a combinação entre os Presidentes da Comissão Europeia e do Conselho Europeu, que exigem provavelmente uma revisão dos Tratados (embora aqui haja posições divergentes). Neste momento, não existem condições políticas na Europa para se fazer uma revisão de tratados focada em questões institucionais. Os europeus estão fartos de discussões sobre Presidentes e instituições.

O segundo erro foi o tom federalista do discurso. Lendo com atenção o discurso, percebe-se os velhos defeitos dos federalistas. Juncker parece acreditar que o crescimento económico e a saída do Reino Unido abrem as portas ao federalismo. Não há maior erro do que atribuir aos britânicos a responsabilidade pela derrota das ambições federalistas. Com a excepção de alguns políticos do Benelux (especialmente na Bélgica e no Luxemburgo, a Holanda já se deixou dessas coisas) e de alguns deputados europeus, ninguém quer uma federação europeia. Não quer a maioria da CDU, incluindo Merkel, nem o Tribunal Constitucional alemão, nem sobretudo a população alemã. Em França, ninguém pretende construir uma federação europeia. Ou melhor, não se importariam se fosse a França a mandar; mas isso seria na Europa pré-reunificação alemã, a qual morreu em 1991. Se não há condições políticas para uma discussão institucional na Europa, muito menos haverá para propostas federalistas.

O tom federalista de Juncker cria ainda problemas para as negociações entre a União Europeia e o Reino Unido sobre o Brexit, como se não houvesse já problemas de sobra. Vai reforçar a posição daqueles que em Londres querem um “hard Brexit”, que sempre viram no federalismo europeu uma grande ameaça para o Reino Unido. Ora, a Europa precisa muito mais de um bom entendimento com o Reino Unido do que de debates federalistas, os quais apenas criam divisões e desconfianças em relação a Bruxelas.

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O primeiro-ministro português, em Bruges, fez bem em demarcar-se dos debates institucionais e das discussões federalistas. Por outro lado, não estou certo que seja bom para Portugal defender a ideia de uma União de geometria favorável (mais uma vez, Costa afastou-se de Juncker, o qual criticou a ideia da Europa a várias velocidades em Estrasburgo). Percebe-se a razão que levou Costa a fazê-lo. Não quer um alargamento do euro à Roménia e à Bulgária antes do reforço da coesão económica entre os actuais membros da moeda única. Costa quer um orçamento para a Zona Euro que reforce a convergência entre os seus membros. O alargamento do euro deve ficar para depois. Esta posição mostra uma visão de um orçamento para o euro semelhante à de Macron.

Aqui, começam os problemas e as divisões entre a Alemanha e a França. Aparentemente, começam a construir-se consensos sobre as reformas na Zona Euro, nomeadamente a criação de um Fundo Monetário Europeu, de um “ministro das Finanças” europeu, e de um orçamento para o euro. Mas o diabo (e neste caso é mesmo o diabo ) está nos pormenores. Apesar de a discussão estar a começar agora, já se percebeu que há divergências importantes entre Berlim e Paris. Comecemos pelo ministro das Finanças. Seria um ministro para toda a União Europeia, à semelhança do Alto Representante para a política externa? Ou apenas para o euro? Para Merkel (e para Juncker), seria para a UE. Para Macron (e para Costa), seria apenas para o euro. Mas há ainda uma diferença maior. Macron (e Costa) quer um ministro que seja uma espécie de um Pai Natal, cheio de dinheiro para distribuir. Merkel quer um ministro que seja um polícia e imponha regras e disciplina aos mais indisciplinados. Estou com curiosidade para ver como se vai conciliar um Pai Natal com um polícia.

Vejamos agora a ideia de um orçamento para a Zona Euro. Há muitas formas de a concretizar. Paris (e Lisboa) quer um orçamento maximalista com novos recursos financeiros. Berlim não está muito entusiasmada com a ideia, o que se compreende visto que a Alemanha seria o maior contribuinte. Desconfio que Merkel acabará por aceitar que algumas das linhas orçamentais actuais sejam transferidas para a Zona Euro. Paris e os seus aliados do Sul não gostarão desta solução minimalista. Para convencer os alemães da bondade da visão maximalista, oferecem uma cenoura chamada reformas. Mas os alemães sabem muito bem, demasiado bem, que não há dinheiro no mundo que force os franceses ou os italianos a fazerem reformas. As reformas económicas são construídas internamente, não são impostas por outros. Aliás, Portugal é um bom exemplo de que fundos não produzem reformas. Se assim fosse, o país não teria chegado à falência depois de três décadas a receber dinheiro de Bruxelas.

Os líderes europeus decidiram que 2018 será um ano para reformar o euro. Num ano crucial para as negociações sobre o Brexit, quando os países europeus deveriam estar unidos, as discussões sobre o futuro do euro vão expor as divisões europeias e as divergências entre Berlim e Paris. Os negociadores britânicos devem estar cheios de vontade que a Europa comece a discutir o euro. Em segundo lugar, o governo português terá que decidir como se deve posicionar perante as diferenças entre a Alemanha e a França. A tentação será não escolher qualquer dos dois. Uma estratégia que dependerá da tolerância de Merkel e, sobretudo, de Macron.