A Covid-19 veio provar que o mundo se tornou permeável a pandemias pela velocidade com que grandes massas de pessoas se deslocam hoje entre países e continentes.

Veio provar também que o alastrar de uma pandemia pode ser muito rápido, apanhando de surpresa tudo e todos.

É provável que a próxima pandemia não venha de um coronavírus, dadas as notícias de que algumas instituições de investigação biológica, como as forças armadas norte-americanas, estão a preparar uma vacina contra a generalidade dos coronavírus que poderá ver a luz do dia dentro de cinco anos. Mas o arsenal de perigos biológicos da natureza é extenso.

Convém, por isso, retirar algumas lições desta pandemia para estarmos melhor preparados para – queira Deus que não – uma próxima. E algumas dessas lições podem registar-se desde já.

Quanto à máquina do Estado. Sendo o Primeiro-Ministro, a ministra da Saúde e a ministra que tutela a Segurança Social os responsáveis do combate a uma emergência sanitária, é incontornável que os seus critérios de decisão devem andar mais próximos da realidade e menos de uma agenda partidária e ideológica do que andaram, designadamente nos momentos de nomeação dos responsáveis do Ministério da Saúde e nos momentos das mais importantes decisões de combate à pandemia.

O Serviço Nacional de Saúde, pese embora a abnegação muitas vezes heroica dos profissionais de saúde e de outros funcionários, falhou no momento em que foi testado pela pandemia.

Entrou em rutura nos hospitais, teve de abandonar milhares de pacientes de outras doenças para combater a pandemia e o número de mortos não relacionados com Covid aumentou significativamente neste período.

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As administrações regionais de saúde procuraram esconder repetidamente a desorientação e a desarticulação no combate à pandemia – mais nomeações com critérios partidários – e toda a gente percebeu que o Governo não iria integrar os hospitais privados no sistema de saúde mobilizado para o momento da pandemia, doesse a quem doesse. E se doeu. Como teria sido se essa integração se tivesse dado desde início, como deveria ter sido feito, se houvesse menos ideologia e mais sentido de Estado?

A mobilização das capacidades industriais do país não foi feita quando possível. Ainda me lembro duma entrevista da CMTV ao diretor da fábrica da Bastos e Viegas, grande produtora portuguesa de material hospitalar, a perguntar-lhe como era possível que toda a capacidade produtiva de máscaras daquela unidade industrial estivesse a produzir para exportação, quando o país não tinha máscaras e o diretor a dizer: “Mas minha senhora, não temos qualquer encomenda do Ministério da Saúde, ou por certo a satisfaríamos”. Esta mobilização foi tardia e mal articulada.

Sendo a Direção-Geral da Saúde o organismo decisivo da ação estratégica no combate a graves situações como as pandemias, impõe-se que os partidos reflitam sobre os seus dirigentes.

Esta Diretora-Geral, pese embora esteja seguramente a fazer o melhor que pode, é o fruto transparente de uma nomeação com critério basicamente político. Começámos por ter declarações seguras acerca da impossibilidade de a pandemia chegar da China a Portugal, não tomámos as medidas que se impunham de condicionamento relativamente a deslocações massivas de pessoas a Itália, para uma feira de sapatos em Milão e para um jogo de futebol, quando em Itália a pandemia já matava muita gente, e eis-nos, de repente, atingidos pela pandemia, sem testes, sem defesa, desprevenidos. E a Diretora-Geral a perorar contra as máscaras na televisão. Estas são imagens que retenho, inesquecíveis.

Houve dezenas de erros graves desta técnica de saúde que, repito, fez e faz seguramente o melhor que pode, mas que não foi, não é, o quadro de saúde que o país precisou de ter naquele lugar, onde eventualmente não estaria com outro critério de nomeação menos partidário e mais refletido. É decisivo que os partidos do arco governamental percebam que este lugar não pode, nos dias de hoje, ser um lugar de recompensa política.

Mas também devemos refletir acerca do que é hoje a máquina da Direção-Geral da Saúde. Como muitos outros organismos do Estado, está subdimensionada para as competências que tem.

Em muitos outros casos, o problema é do excesso de competências dos organismos, porque os governos inventam de modo populista competências supérfluas sem cuidar dos meios para as cumprir. No caso da DGS, todavia, as competências são necessárias e é preciso redimensionar o seu pessoal, porque sem meios humanos não é possível que uma estrutura daquelas dê a resposta de que dependem as vidas dos Portugueses.

O excesso de dependência da União Europeia. Não existe uma política europeia de saúde. Por isso, a União Europeia pode ser um apoio às políticas nacionais de saúde dos países-membros, mas o país não deveria ter orientado a sua política de saúde para uma dependência completa das decisões comunitárias, como aconteceu, com poucas e honrosas exceções.

O país foi percebendo a dependência psicológica da ministra da Saúde e da Diretora-Geral de Saúde relativamente ao que se passava “na Europa”, fosse por desorientação, fosse por sentirem necessidade de se escudarem politicamente, quando o que se queria ver era poder de decisão em Portugal, onde o problema se foi agudizando e onde os Portugueses, às tantas, sentiram que se não cuidassem de si, ninguém os protegeria, como aliás em muitos casos se verificou.

As pessoas com alguns meios apressaram-se a oferecer equipamentos e aparelhos aos hospitais, o Governo não os conseguia comprar, mas os privados sim.

Durante um tempo infindável, mantiveram-se os bombeiros arredados do combate à epidemia, entregando-se a uma estrutura pública subdimensionada para a pandemia o transporte de doentes Covid. Mais uma decisão ideológica. Resultado: pacientes durante dezenas de horas à espera do transporte, designadamente doentes em estado crítico. Recordo o caso de um camionista que se começou a sentir mal depois de passar a fronteira, no Alentejo, e que já ia em seis horas de espera numa estação de gasolina… com bombeiros a 10 minutos de distância, mas inibidos de responder.

Depois, finalmente, autorizaram-se os bombeiros a transportar doentes Covid, sem proporcionar em muitos casos o material de proteção necessário. Como aconteceu, aliás, nos hospitais. Os bombeiros, como o pessoal de saúde, correram riscos e muitos para ajudar as pessoas. O Governo foi desmentindo que assim fosse, o que, além do mais, revelou um espírito de ingratidão assinalável.

Bem dizia o Presidente da República que era necessário uma política de verdade durante a pandemia… mas nem assim.

A maior falha, todavia, ocorreu quando a pandemia entrou nos lares onde o país mantém muitas dezenas de milhares de idosos. As confusões, a desinformação, a falta de coordenação entre a Saúde e a Segurança Social e a inacreditável lentidão de resposta do Estado a este problema de vida ou de morte foram fatores que levaram a tantos falecimentos. Como foi possível? Foi como se a Segurança Social, ou os seus políticos e altos dirigentes, todos nomeações políticas, como hoje se sabe, não tivessem a visão profissional necessária para se aperceberem da necessidade de muito rápidas e muito eficazes medidas de exceção para apoiar os lares onde o pessoal e os idosos foram ficando contaminados. Ora isto merece profunda reflexão, porque a habilidade política para integrar as organizações partidárias e para escapar das irresponsabilidades entre os pingos da chuva não corresponde geralmente aos requisitos fundamentais para ser responsável por partes muito frágeis da população portuguesa.

Levanta-se, assim, uma questão de fundo do nosso regime político: será que é aceitável continuar a nomear para lugares de elevada responsabilidade humana e profissional indivíduos cuja maior mais-valia curricular é a quantidade de apoios internos que conseguem adquirir num partido político, neste caso concreto no Partido Socialista, mas amanhã, eventualmente, noutros partidos?

Não se pode deixar de referir a cobertura dada por muitos órgãos de comunicação social às versões do Governo, com conferências de imprensa onde raros foram os jornalistas a fazer as perguntas difíceis que se impunham e onde se viu um espírito que, mais do que de colaboração, foi em muitos casos de colaboracionismo, esquecendo que a principal responsabilidade do jornalismo é a verdade, não a defesa de ideologia, partido ou governo. Isso também não ajudou e merece reflexão. Quando um jornalista ou uma chefia de redação se dobram a servir o interesse de um governo em desabono da realidade, seja por pressões, seja por decisão própria, então para que serve?

Deve deixar-se aqui um elogio à qualidade jornalística com que este órgão de Comunicação Social tem coberto a pandemia, designadamente ao trabalho extraordinário realizado em hospitais onde se luta contra esta doença. Aterrador, mas rigoroso e de uma elevada qualidade jornalística.

Muito falhou porque fomos apanhados desprevenidos. Mas as pessoas, os cidadãos, não falharam. Foram disciplinados e colaboradores, até as mensagens confusas dos políticos, no Natal, terem quebrado o espírito de precaução que foi norteando o comportamento da generalidade dos cidadãos da República. Aí, foi o descalabro.

Uma última reflexão acerca da menor ou maior dependência política dos organismos de Saúde. A Suécia tem um organismo de saúde com grande autonomia relativamente ao governo. Verificou-se que, neste momento de pandemia, foi uma má solução. É fundamental a dependência da responsabilidade governativa. Mas os governos têm muito a aprender sobre a responsabilidade em matéria de Saúde e a indispensabilidade de manterem uma política de verdade rigorosa para com todos nós em momentos de dificuldade.