P. G. Wodehouse formulou há muito o que aparentemente é uma condição necessária (embora não suficiente) para a obtenção da felicidade: pertencer àquela metade do mundo que ignora o que fazem os restantes três quartos (hoje em dia, nove décimos talvez seja mais seguro). Um exemplo. Não seríamos mais felizes ignorando o espectáculo dado por António Costa, o nosso chef Juan Sánchez, a vender a sua frigideira Master Copper, vulgo ministro Pedro Marques, ao Parlamento Europeu, à custa de promessas mirabolantes que não vão ser cumpridas (“é como cozinhar no ar”)? Para quem não aprecia a exibição despudorada do cinismo, não era melhor ignorar os personagens e o estilo deles? A felicidade faz-se de pequenas coisas, entre as quais se contam pequenas ignorâncias.
Manda a verdade que se diga que a atenção desprevenida ao mundo exterior também tem os seus benefícios ocasionais. Recentemente, por exemplo, ouvi o admirável Jaime Marta Soares queixar-se na televisão, a propósito de umas notícias sobre a quantidade de almoços requisitadas pelos bombeiros, da forma como a comunicação social explorava a ignorância das pessoas sobre o “teatro de refeições”. Olha toma lá: “teatro de refeições”! Pode-se sempre aprender alguma coisa de útil. Sobretudo, de facto, em matéria de linguagem. Por exemplo, a existência de “mediadores de leitura” – uma expressão fascinante. E aqui haveria que explorar o rico filão do espaço. Desde há uns tempos, desde há um certo “espaço temporal”, que o espaço tomou conta de tudo. À beira de minha casa, havia uma loja de roupa interior feminina que era um “espaço de intimidade”. As farmácias, pelo menos em França, são o nosso “espaço de saúde”. Pouco falta (creio que já escrevi isto) para que o Bloco não se apresente aos eleitores como “o seu espaço de esquerda”. Longe vão os tempos em que a criatividade linguística posta ao serviço das grandes massas se encontrava reduzida aos comentadores futebolísticos (o jogador y manifesta “uma grande capacidade de efabulação narrativa no jogo pela cabeça”). O “espaço da criação” encontra-se hoje em dia consideravelmente alargado.
Lamentavelmente, esta nova extensão da criatividade literária não vem acompanhada, é o mínimo que se pode dizer, de um aumento de atenção aos vários planos em que a linguagem funciona. No outro dia, por causa de umas passagens quaisquer de Fernando Pessoa, uma senhora angolana protestava contra a utilização do seu nome pela CPLP por ele ser “racista” e “esclavagista”. Não lhe passou pela cabeça que essas passagens eram, como toda e qualquer linha que Pessoa escreveu, literatura, e sobretudo que não deve ser difícil, mais uma vez como em relação a toda e qualquer linha que Pessoa escreveu, encontrar passagens suas que, explícita ou implicitamente, digam o seu contrário. Pessoa não é Céline, que, independentemente do seu génio, foi efectivamente dominado por uma obsessão anti-semita. A incompreensão deste facto simples é cada vez mais sinal dos tempos. Vivemos em tempos em que a linguagem é tendencialmente encarada como uma superfície lisa, sem rugas, que deve transportar um sentido único. É o “espaço de sentido” a que temos direito.
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