As alterações climáticas, a descarbonização, a pandemia e, agora, a guerra entre a Ucrânia e a Rússia têm impactos significativos sobre o comércio global, as redes logísticas, a segurança alimentar e os sistemas agrários. Um dos aspetos nucleares dessa interconexão diz respeito ao nexo de interdependência entre as regras dominantes no comércio global agroalimentar e a natureza dos sistemas produtivos agrários. Está em causa, devido a esse nexo de interdependência, o nível de intensidade e o grau de abertura dos sistemas agrários e, logo, a natureza e a escala da produção conjunta, isto é, o nível e a qualidade da oferta de produtos finais, biodiversidade e serviços de ecossistema.

Sabemos que em mercados globalizados, mas insuficientemente regulados, temos em presença as seguintes conexões fundamentais:

  • Maior abertura e menor proteção externa significam maior concorrência e intensificação agrária, logo, uma pressão crescente sobre os recursos e os ecossistemas;
  • Maior abertura, concorrência e intensificação significam uma agenda mais intensa nas áreas da biotecnologia e da engenharia genética e a formação de um mercado de material genético onde a biopirataria e corrupção acontecem cada vez mais;
  • Maior abertura, concorrência e intensificação traduzem-se numa crescente simplificação dos ecossistemas, com fragmentação e concentração da propriedade, empobrecimento das comunidades locais e modos de fazer agricultura tradicional;
  • Maior abertura, concorrência e intensificação agrária acarretam um número crescente de problemas de justiça ambiental, conflitos distributivos e uma nova agenda para o ambiente, com diversas designações – o desenvolvimento sustentável, a modernização ecológica, a transição verde, o pacto ecológico – o que, só por si, já denuncia a complexidade desta interconexão fundamental entre crise global, segurança alimentar e sistemas agrários.

Sabemos, também, que a relação entre sistemas agrários, biodiversidade e governança global pode ser colocada em dois planos:

  • Em primeiro lugar, no plano interno, numa aceção de reserva alimentar e conservação de recursos; neste plano somos (Portugal) um mercado irrelevante, um mercado de fim de linha em termos agroalimentares, por isso mesmo, deveríamos acionar o princípio de precaução e recolocar o nosso problema alimentar (reserva estratégica e biodiversidade correspondente) numa aceção muito ampla tendo em vista cumprir um leque convergente de objetivos fundamentais, a saber: o ordenamento do território, a conservação de recursos e a biodiversidade, a conexão entre paisagem, unidades de paisagem e serviços de ecossistema, a relação de complementaridade e integração cidade-campo;
  • Em segundo lugar, no plano externo, com a pressão crescente dos mercados globais sobre os recursos e o ambiente, a deslocalização dos locais de produção e a sua substituição por importações, o abandono de terras e a concentração da propriedade; importará, ainda, saber a divisão do trabalho que queremos fazer entre sistemas agroalimentares locais e fileiras industriais viradas para a importação de matérias-primas de base, o que, por vezes, nos levanta problemas críticos de segurança alimentar.

Sabemos, ainda, que no plano da sociologia política interna, assistiremos a uma profunda alteração das relações de poder implicadas por esta mudança de escala e de estratégia, que privilegia os sectores a jusante da fileira económica (distribuidores, transportadores e retalhistas) em detrimento dos sectores a montante (agricultores). Quer dizer, sem uma regulação forte que imponha regimes de reciprocidade no comércio global e proporcione algumas externalidades positivas fundamentais (na biodiversidade, conservação dos solos, ocupação dos territórios desfavorecidos) não haverá condições para reterritorializar muitos espaços e relações cidade-campo, hoje muito depauperados.

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Face a esta dupla colocação, interna e externa, da relação entre sistemas agrários, biodiversidade e governação global, vejamos, então, como se posicionam as duas principais lógicas de funcionamento dos sistemas agroalimentares. A lógica bioprodutivista, é uma lógica abstrata, dos grandes espaços, dos grandes mercados, das grandes explorações, da grande distribuição, da cadeia verticalizada, do contrato leonino entre produção e distribuição, do big is beautiful e de economias of scale. A lógica ecossistémica diz respeito a uma lógica de funcionamento mais territorializada, de um sistema arterial e capilar mais diversificado e policultural e mais enraizada nos sistemas naturais locais, enfim, uma lógica do small is beautiful e de economias of scope.

Deste ponto de vista, mais dual ou dicotómico, podemos dizer sobre os sistemas agrários em presença que: plantações de árvores monoespecíficas não são florestas multiusos, animais clonados em estabulação fechada não são pecuária de fins múltiplos, culturas transgénicas de plantas-soldado não são agricultura policultural, arranjismo verde de embelezamento exterior não é arquitetura paisagística de uma beleza intrínseca, operações fundiárias economicistas não são engenharia biofísica, o esverdeamento oportunístico de algumas culturas não garantem a saúde do ecossistema, a gestão do sistema de produtos, por razões de marketing, não tem nada a ver com a gestão dos produtos do sistema, por razões ecológicas e ambientais. Aqui chegados, podemos formular três conclusões de ordem geral:

  • A lógica bioprodutivista desemboca na comoditização dos mercados agroalimentares por via da circulação de grandes massas de bens transacionáveis, mas precisa rapidamente de um regresso à normalidade, uma vez que as crises globais – climática, energética, sanitária, securitária, estagflação – não a favorecem;
  • A lógica ecossistémica é uma lógica de compromisso entre os mercados globais e os mercados locais, em que se atende e valoriza o pluralismo dos modos de fazer agricultura, produzir alimentos, salvaguardar a saúde dos ecossistemas, proteger e valorizar os territórios mais desfavorecidos e de acautelar, nesta rede de relações, a saúde pública e o bem-estar das populações;
  • O equilíbrio entre as duas lógicas precisa de ser muito bem calibrado em cinco campos analíticos principais: o regime de governança global, mais liberal e/ou mais regulatório, o compromisso entre tecnologia e ecologia na gestão dos agrossistemas, o compromisso entre modernização ecológica e conversão agroecológica na gestão dos agroecossistemas, a colaboração entre a assessoria corporativa e associativa e a curadoria institucional e territorial e, finalmente, a gestão da dieta alimentar e dos comportamentos saudáveis e as novas métricas de sustentabilidade.

Uma nota final para o programa estratégico da agricultura portuguesa no quadro da PAC em curso de aprovação (PEPAC). Um programa com esta amplitude não pode subestimar os vários fatores de impacto desta década e, em seu lugar, preferir a mera administração corrente, a gestão de crises e do lobbying corporativo de ocasião. Nunca como agora foi necessário um espírito fortemente reformista para, simultaneamente, combater as alterações climáticas e concretizar uma nova matriz energética, defender uma reserva estratégica alimentar e salvaguardar a biodiversidade, os ecossistemas e os serviços de ecossistema, proporcionar uma transição justa em relação às redes logísticas e cadeias de valor agroalimentares e acautelar a coesão social dos territórios que as acolhem. Se o PEPAC não acautelar todos estes níveis de impacto estaremos a lamentar, daqui por alguns anos, uma maior concentração de poder sobre os recursos naturais, o alargamento das escalas de produção e as monoculturas intensivas, a distorção do rendimento no interior das cadeias de valor, a monotonia biofísica e o empobrecimento da diversidade social dos territórios. Espero bem que esta profecia não se concretize.