Existe no Facebook um grupo com 9044 membros (ao tempo em que escrevo este post) designado “Imagine que não havia religiões”. Creio não violar nenhuma norma ou interdito ao comentá-lo, já que o seu descritivo indica que todos o podem ver, bem como aos seus membros e conteúdos. O grupo é fundamentado da seguinte forma:

“(…) Deus não passa de uma infame chantagem de medo, de um amesquinhamento ignóbil e indigno de quem tem um mínimo de respeito por si próprio, não é mais do que uma desculpa cobarde de quem não tem a coragem e a dignidade suficientes para olhar a morte de frente e para, antes, aproveitar e desfrutar em liberdade cada um dos momentos que a vida nos proporciona”. “Imagine que não havia religiões”. Tentei imaginá-lo: e se não houvesse religiões?

Na troca de argumentos entre crentes e não-crentes que ocorre no grupo o que mais impressiona é a parte de violência que contém (há excepções, claro): são violentos os argumentos dos não-crentes, violentas as respostas dos crentes de qualquer religião (nele “postam” cristãos, evangélicos, muçulmanos, judeus e muitas outras denominações religiosas). Recorre-se a filmes (de actualidade, como os linchamentos no Estado Islâmico ou declarações mais ou menos caricatas de pastores de distintos cultos), caricaturas – sim, lá está o traço inconfundível do Charlie Hebdo no seu pior -, citações das escrituras ou do Corão, fotografias e muito mais, em defesa do sim e do não. O maniqueísmo é absoluto, a já descrita violência (verbal ou, neste caso, escrita e visual) servida a rodos e com generosidade.

Os anti-religião recorrem a múltiplas formas para desacreditar “o inimigo” (os crentes): são os habituais recursos de estilo, ironia e sarcasmo, generalização, argumentos científicos ultima ratio, invocação de causalidades impossíveis de provar (religião = guerras, ódio, miséria). A julgar pelo conteúdo ou tom dos textos, são quase todos ateus. Não são agnósticos, são ateus.

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Faz toda a diferença: os ateus negam a existência de qualquer Deus, os agnósticos não o aceitam nem o negam, limitam-se a considerar ser impossível para a razão humana analisar e apreender quaisquer questões metafísicas. E o sentimento anti-religioso é conduzido por ateus em nome da razão, qual Deus de uma causa: a destruição (ou conversão?) dos crentes. Colocam-se assim no mesmo plano dos que criticam. Sob pena de uma insanável contradição, a condenação da religião como responsável secular pela violência no Mundo não pode basear-se na violência, seja ela física, verbal ou escrita.

“Imagine”, pedem-nos os criadores do grupo: imagine? “Imagine… there’s no heaven”. Imaginemos levar à letra as palavras de John Lennon, a proposta de um Mundo sem religião – sem inferno em baixo (“no hell below us”) -, em paz, gente a viver em harmonia, “como um só”. Um Mundo “living for today” numa imensa fraternidade – “brotherhood of man”-, e partilha. Soa a utopia? É utopia; é, aliás, matéria de muitas utopias. E é também, curiosamente, o ferro de que foi forjado o cristianismo – nas primitivas asserções bíblicas designável (e muitas vezes designado) “comunismo primitivo”.

Utopia: Lennon imagina um Mundo sem países, sem nada por que matar ou morrer; sem propriedade ou bens privados (“no possessions”), sem ambição nem fome. Um ideal inexistente que certamente não apreciariam 90% dos ateus militantes anti-religião, um não-lugar mais utópico do que o “paraíso” de Thomas Morus a que aportou o jovem português Rafael Hitlodeu. Utopia, como é utópica é a ideia de uma civilização humana sem religiões. E é interessante recordar que a mais radical e sistemática rejeição do direito humano de crer em deuses é a do comunismo – outra utopia -, que lhe chamou “ópio do povo” e proscreveu a prática religiosa como inimiga do Estado (soviético, chinês, cubano).

A religião é por definição um caminho de esperança, alternativa aos totalitarismos de que acaba sempre por se tornar inimiga; e não se confunda esse facto com conivências ou cumplicidades forjadas no molde da cupidez, ambição e estupidez humanas, nem com a violência e o obscurantismo em que se geraram aberrações como a Inquisição ou os actuais radicalismos islâmicos. As religiões são sempre, na essência, buscas de fundamento e caminho, e a competição entre elas, que existe, não faz sentido. O ser humano precisa, para sua sanidade e equilíbrio, de transcendente. Acreditar em Deus, em qualquer Deus – mesmo num deísmo a que se chega por gnose, isto é, directamente, percorrendo através da intuição o caminho da salvação e a busca da imortalidade humana -, é profunda e muito naturalmente humano, faz mesmo parte da natureza do humano.

Uma razão para a necessidade de transcendente é justamente a incapacidade da razão de tudo explicar, deixando sem respostas os frágeis habitantes do terceiro planeta a contar do sol: quem somos? De onde vimos? Para onde vamos (sobretudo isso)?

Dizem-nos que a ciência já explica quase tudo. A sério? Então porque razão não temos a menor ideia do que é feita a matéria escura e ainda menos a energia escura, explicação possível para a expansão acelerada do Universo? A ciência explica tudo… mas não consegue explicar 95,6% da composição do nosso Universo? A verdade é ela ainda explica muito pouco. Isto não é negá-la, não tem nada a ver com criacionismo ou crendice, é apenas colocar as coisas no lugar. E quanto ao que sucede antes do big bang, são várias as teorias, da existência de um Universo precedente à ideia da escala infinita. A verdade (como julgo ter ouvido, não sei onde, a Neil deGrasse Tyson, o já famoso apresentador da nova versão de Cosmos) o que se passa antes do big bang é do domínio da metafísica – e de Deus, um Deus qualquer.

O ser humano precisa de transcendente, repito. Precisa de uma fé que lhe dê esperança e o justifique, e tanto mais quanto mais miserável for a sua vida. Algo em que os ateus pecam (perdoem-me a ironia do verbo maldito) é a aparente incapacidade de perceber a importância da religião – seja ela qual for – para os mais desfavorecidos; imaginem, meus amigos do “imaginem”, que aos animistas da pobre África profunda, aos islamitas das aldeias remotas do Atlas, aos cristãos das favelas lúgubres da América Latina, se negava a possibilidade de crer num além feliz, no Ser (ou nas forças da natureza) transcendente que os ama apesar da sua aparente exclusão do banquete humano? Cruel, diriam?

Mas não só: já em tempos citei Miguel de Unamuno e a sua versão racional: fomos nós, humanos, que inventámos Deus – e a religião (todas elas, digo eu) -, pondo-o ao serviço da nossa própria justificação, da sede de imortalidade que nos habita. Para que se ao nada estivermos destinados, possamos viver de forma a torná-lo uma injustiça, acreditando. Essa é a mensagem que vale a pena, não o ódio de ateus que recusam o direito dos outros acreditarem no que quiserem. Direito a não acreditar, sem dúvida; chamar cobarde a quem escolhe acreditar – e acredita livremente, sem peias, convictamente -, parece cobardia. E é cruel…

O Papa Francisco já explicitamente assegurou que também os ateus vão para o céu, desde que pratiquem o bem. É interessante imaginar o encontro no céu entre ateus e crentes. P: “Você é ateu?”. R: “Sou, graças a Deus” (do conhecido cartoon do brasileiro Will Leite).

* Professor da Universidade Católica, Instituto de Estudos Políticos