Desde que Donald Trump foi eleito presidente dos Estados Unidos da América que a ideia de que devia ser deposto passou a figurar em conversas, redes sociais e órgãos de comunicação social. A abertura do processo de destituição lá chegou, mas pelas razões e da maneira mais inesperada: Nancy Pelosi, a moderada e prudente speaker da Câmara dos Representantes que sempre se opôs – e bem – a este tipo de processos, anunciou que Trump terá “posto em causa a segurança nacional”. Referia-se a uma conversa entre o presidente americano e o homólogo ucraniano em que Trump terá pedido a Zelenski que desse uma vista de olhos nos negócios do filho de Joe Biden e não a desconfiança relacionada com relações perigosas entre os Estados Unidos e a Rússia.

Este acontecimento, que vai influenciar não só as próximas eleições presidenciais como pode constituir um precedente importante na vida política americana, merece três breves comentários.

O facto de o impeachment se ter banalizado com a chegada de Trump ao poder e a radicalização da ala mais à esquerda do Partido Democrata são péssimas notícias para a instituições americanas, que, vale a pena referir, têm sido um travão eficaz às medidas mais controversas e iliberais do presidente. Se a destituição passa de caso excecional para arma política, desaparece uma forma importante de contenção de poder absoluto. Como veremos mais à frente, já está beliscada.

O volte-face. Nancy Pelosi percebeu isto e tem sido aquilo que Lewitsky e Ziblatt chamam, noutro contexto, uma “gatekeeper” da democracia americana. A mudança repentina terá uma de três razões. Uma hipótese – a única legítima – é que Trump terá mesmo cometido um crime político tão grave que Pelosi não teve alternativa. O que sabemos até agora – a transcrição da conversa telefónica entre Donald Trump e Volodymyr Zelenski – é de uma tremenda falta de ética, mas dificilmente será visto pelo Senado (de maioria republicana) como um crime de traição. Resta saber se há outras provas ainda desconhecidas de todos nós.

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As outras duas possibilidades, ilegítimas, são que ou Pelosi finalmente cedeu à ala mais radical do Partido Democrata ou que se trata de um ato desesperado para desacreditar o presidente para que este se saia mal nas urnas no ano que vem.

As consequências políticas. Se as duas últimas (ou uma das duas últimas) razões forem as reais, então a polarização político-partidária chegou a um extremo inquietante (porque a política americana foi desenhada para gerar consensos, caso contrário bloqueia). Mas tenderá a ser contraproducente. Trump ganhou as últimas eleições com a bandeira de que a elite de Washington estava corrompida e era preciso alguém sem passado político para a combater. Mestre em usar a comunicação em massa a seu favor, Trump vai servir-se deste processo para se vitimizar e apontar o dedo àqueles que derrotou em 2016, com o argumento de que não respeitam a vontade dos norte-americanos. Se este motivo foi poderoso no passado, um processo de impeachment vazio vai torná-lo incontornável. E o presidente incumbente tem um novo argumento de peso para ser reeleito.

Dê por onde der, há uma questão essencial: a banalização, pelo menos retórica, do impeachment levou a que a abertura deste inquérito pareça há muito anunciada. Independentemente do aconteça, esta instituição norte-americana sai abalada. E só o tempo (e a prova que o presidente é um criminoso político) lhe voltarão a trazer a importância que nunca devia ter perdido.