«Mentir, eis o problema:
minto de vez em quando
ou sempre, por sistema?

[…]

Pensarei ainda nisto.
Por enquanto não sei
se me exponho ou resisto,

se componho um casulo
e nele me agasalho,
tornando o resto nulo,

ou adiro à suposta
verdade contingente
que, de verdade, mente.»

Carlos Drummond de Andrade, in ‘Boitempo’

A Primavera ainda não tinha chegado e já se sentia no ar um característico travo agridoce: o odor a promessa. Porque são assim, muitas delas, as promessas… agridoces. Bem sabemos que mais não são do que meras palavras que alguém soltou ao vento ou então tomou a liberdade de rabiscar num pedaço de papel esquecido – quiçá por rebeldia, quiçá por malvadez, mas que, no fundo, invariavelmente ali acabam por perecer. A causa de morte? O esquecimento. Ou talvez não.

O Governo português, aparentemente consciente das consequências socioeconómicas que a pandemia de Covid-19 acarretou (tais como o aumento do desemprego e o agravamento das desigualdades) e movido, aliás, pelo intento de promover “mais e melhor emprego para todos”, bem como o “trabalho digno” – objetivo que ostentou como sendo sua prioridade, decidiu, então, em março deste ano, criar o programa «EstagiAP XXI».

Em suma, tal programa previa a criação de 500 vagas de estágio, as quais seriam distribuídas pelas entidades promotoras e atribuídas aos candidatos colocados, conferindo-lhes uma bolsa de estágio, incluindo subsídio de refeição, e uma vantagem adicional: uma vez findo o estágio (com aproveitamento), os estagiários conquistariam uma majoração de 2 valores na sua classificação, acaso viessem a candidatar-se a um procedimento concursal de recrutamento na Administração Pública, majoração essa que impreterivelmente caducaria uma vez decorridos 2 anos.

Ora, tal projeto bem que poderia ter tido pernas para andar, porém, na realidade, andou a cambalear precisamente até à véspera do equinócio de Outono – altura em que foi publicada a lista definitiva de candidatos colocados e não colocados. Daí em diante, deve ter tropeçado, pois limitou-se a descer ladeira abaixo.

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Mas vamos ao que interessa: eu fui uma das felizardas, fiquei colocada.

Seguiu-se a habitual onda de felicidade, a sensação de conquista, a criação de várias expectativas e sonhos; imaginei como seriam as novas rotinas… e torci, acima de tudo, para que aquele fosse apenas o início de uma jornada mutuamente enriquecedora. Mal eu sabia o triste fado que me estava reservado.

Eu sou licenciada e mestre em direito, tendo já concluído ambos os graus académicos (escusado será dizer que me candidatei a vagas na área de Direito). E acreditei, fruto de uma certa ingenuidade, que, de facto, teria a oportunidade de aprender, de valorizar as minhas qualificações e competências e de concretizar todas as promessas que resultavam da propaganda falaciosa que envolveu o programa ao longo destes oito meses.

No primeiro dia de estágio na Unidade de Aprovisionamento da entidade promotora, e ao contrário daquilo que se encontrava legalmente previsto, eu não assinei nenhum contrato, nem tive conhecimento do meu plano de estágio (isto é, os objetivos a atingir, a descrição das responsabilidades e funções a desempenhar, etc.). No meu primeiro dia de estágio, trabalhei durante 7 horas, tal como acordado com o meu superior hierárquico, e aprendi.

Aprendi muito sobre baldes e caixotes do lixo, contentores, reciclagem, micro-ondas, frigoríficos, carros de limpeza, máquinas de lavar e secar roupa, cofres de mão, cofres embutidos, cofres biométricos, chaveiros de diversas dimensões… Num só dia aprendi tudo isso: analisei dezenas de páginas repletas de características e especificações dos equipamentos supramencionados, além de algumas ilustrações mais ou menos claras… e o Direito onde ficou? E os meus direitos, onde ficaram? Em que corredor ou em que momento os perdi? Por que é que me resignei e cumpri uma tarefa que nada tinha que ver com a minha área de formação e/ou com a minha carreira e experiência profissionais? Por que é que ouvi, impávida, que mais ninguém quis fazer “aquilo” e que “aquilo” estava ali, por fazer, há mais de um mês, sem questionar, sem reivindicar? Por que é que permaneci nas instalações da entidade promotora, durante todo aquele tempo, tendo pleno conhecimento de que os meus direitos estavam a ser astuta e intencionalmente violados, ao passo que ouvia – reiteradamente – que durante a tarde viria assinar o meu contrato, o que nunca veio a suceder?

Porque, no fundo, todos gostamos de acreditar em algo e as promessas – mesmo as mais ocas – quando a necessidade aperta têm o dom de seduzir praticamente qualquer pessoa.

Uma vez concluído este curto trajeto pela Unidade de Aprovisionamento, eu aprendi, sobretudo, que nós – seres humanos – não somos, afinal, todos compostos da mesma matéria.