A minha avó costumava dizer: rapazes mimados, adultos estragados. Mas a minha avó vivia num tempo difícil, em que se trabalhava muito e o dinheiro não crescia nas árvores.

No tempo da minha avó, os pais batiam nos filhos quando estes se portavam mal; hoje são os filhos que às vezes batem nos pais. Eu conheço alguns que já levantaram a mão ao pai ou à mãe, por estes terem a mania de dar ordens. E ordens é coisa que a malta não gosta de ouvir.

Dêem-nos incentivos, encorajem-nos a fazer as coisas e o resultado será melhor do que se limitarem a impor regras. O meu pai por exemplo defende que princípios não se discutem. E há muitos anos ensinou-nos os 3 princípios que nos devem guiar na vida: cuidar dos amigos sem jamais os tomar por garantidos; acreditar sempre que somos capazes de alcançar o que almejamos (“vou conseguir”, dizia); e recusar tudo o que nos possa fazer mal.

Os 3 princípios da vida? Depende da forma como os interpretamos. Eu entendi tudo. Entendi que podemos usar em nosso proveito os afectos alheios; um amigo “nerd” disse-me uma vez que isso era manipulação, mas ele fala e age como um adulto e por isso não lhe dei atenção. Entendi que conseguimos sempre o que queremos, ainda que queiramos mais do que aquilo que nos dizem que podemos querer. E entendi que a fronteira do mal e do bem depende do meu livre arbítrio e o que é bom (ou mau) para mim não o é necessariamente para os outros; pelo que, em última instância é mau tudo o que contraria os meus desejos e interesses.

Simples. E aos poucos os meus pais, após a resistência inicial de que a definição das regras da vida fazia parte, jogaram o meu jogo. Deixaram de insistir para que comesse de boca fechada e levasse a colher à boca. Hoje como como quero, abro a boca quando me apetece, espojo-me nas mesas com abandono. Faz parte do meu charme.

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Cresci feliz. Nunca me faltou comida, um tecto, férias anuais e, à medida que os anos passavam, o indispensável: “playstations”, telemóveis de última geração (se tentavam dar-me um mais antigo fazia birra), ipods, ipads e tudo o que os meus amigos também recebiam (eles diziam aos pais que eu tinha, eu dizia aos meus que eles tinham). Recordo uma tentativa, teria uns 15 anos, de limitar o uso dos telemóveis à mesa: duas sessões de amuanço e uma de revolta aberta deram-me luz verde para enviar mensagens e até atender telefonemas durante as refeições. E se só aos 16, coisa que nunca perdoei aos meus pais e foi objecto de gozo por parte dos amigos, pude sair à noite sem hora marcada para regressar, vinguei-me passando a sair quase todas as noites, o que fazia queimar as manhãs, incapaz de me erguer da cama.

A separação dos meus pais, teria eu uns oito anos, ajudou-me a conseguir estas conquistas. Chamo ao que sobre isso aprendi a regra dois e meio: pais separados são sensíveis ao que se diz deles do outro lado e uma contrariedade imposta por um é de imediato compensada pelo outro; numa casa não podia jogar “playstation”, na outra tinha carta de alforria; numa não ia ao macdonalds, na outra “não quer que vás ao macdonalds?; que exagero, vamos já lá…”.

Um dia em que cheguei demasiado tarde – ou muito cedo? –, o meu pai entrou-me pelo quarto dentro, seriam umas três da tarde, e deu-me um sermão. Eu estava meio zombie pois tinha metido uns charros sobre as jolas e vinho marado, e aquilo feriu-me a alma: fui desagradável, e o que mais lhe doeu, ao ponto de se ter retirado abatido, foi ter dito que ele era um mau pai e que me privara da família a que tinha direito; que não viesse agora, aos meus quase 20 anos, dar-me sermões. Até porque, expliquei, eu seguia à risca as suas regras da vida – divertia-me porque era bom para mim e fazia amigos para cumprir a regra nº um.

Eu acho que eles não tinham razão de queixa, porque eu, pelo menos até à Universidade, só chumbei no décimo, que é um ano muito difícil, de resto fui passando de ano, ainda que sempre resvés campo de ourique; o meu pai dizia que a minha única obrigação era estudar e que nem isso eu fazia, mas eu estudava mais ou menos, não tinha culpa que os professores me tomassem de ponta por ser esperto e popular entre os colegas. Aos 18 anos deram-me a carta (era só que faltava que não dessem) e, depois de muita discussão, um carrinho em segunda mão porque, diziam, não tinham dinheiro para mais. Fi-los sentir culpados, e um ano depois recebi um Jeep novinho em folha que, parece, ficaram a pagar a prestações.

A Universidade não me deu gozo, demorei cinco anos a chegar ao fim, mas ainda recebi uma bolsa Erasmus que compensou tudo; fi-la em Itália e, ainda que não tenha completado qualquer cadeira, aprendi italiano, ganhei amigos e amigas. Os meus pais mandavam-me dinheiro, dava para as despesas com fins-de-semana, jantares, festas, durou um ano. Quando finalmente me licenciei, quis fazer um ano sabático ou “gap year”, como se dizia. América do Sul era o meu sonho, pela América do Sul passeei boa parte do ano seguinte graças ao dinheiro que a minha mãe me mandavam que o pai se opunha à ideia e se recusou a financiar-me.

Aos 25, de regresso a casa e aos dois quartos de sempre, decidi trabalhar; estava farto de ter de pedir dinheiro e queria provar ao meu pai que não precisava dele, nem das suas estúpidas regras da vida. Mas não arranjei nada de jeito, só havia estágios curtos e ordenados mínimos, por isso cedi aos rogos deles e iniciei o mestrado. Ainda bem que o fiz, porque, esticado com a tese final e tudo, foram mais três anos divertidos e em que pouco trabalhei.

Agora tenho 29 e estou de novo à procura de trabalho. Para já só há estágios curtos e ordenados mínimos. A mãe dá-me mesada, ao pai peço dinheiro ocasionalmente, sempre na presença da mulher nova. Como não quer fazer má figura e parecer unhas-de-fome, dá-me sempre mais do que peço: “pai emprestas-me 20 euros?” e ele estende-me o cartão “levanta 50, filho”, a olhar para a minha madrasta, que tem menos 25 anos do que ele e mais quatro do que eu; sorrio a pensar nas regras da vida e pergunto-me se ela as terá cumprido.

A vida nunca foi tão boa. Penso que a minha avó tinha razão: jovens mimados são adultos estragados; ainda bem que nunca fui mimado, graças às 3 regras da vida.

PS. Não é a primeira nem será a última vez que escrevo sobre a geração Y, também conhecida como “millennial”. A história é esta, podia ser outra qualquer. Claro que boa parte dos jovens, no intervalo entre os 15 e os 30 e poucos anos, não são mimados, mas os que o são serão adultos estragados, condenados à irrelevância e à subalternidade num Mundo instável e competitivo. Nem todos concordarão, mas acredito não haver regras da vida que ajudem ao sucesso de quem não se ajuda. Cabe-nos a nós, que temos experiência da vida e consciência da realidade, educá-los, responsabilizá-los, alertá-los. Afinal, eles são o nosso futuro.

NB. À cautela, informo que a expressão “rapazes mimados” pode ser transformada sem rebuço nem preconceito em “raparigas mimadas”.