Vamos ver: todos nós conhecemos pessoas incompetentes; queixamo-nos delas, de viva voz, a amigos, nas redes sociais, em comentários nos jornais e meios de comunicação. A crer na vozearia sobre o assunto, uma elevadíssima percentagem de portugueses – das mais diversas profissões e áreas de atividade – é constituída por incompetentes.

Claro que ninguém se reconhece como incompetente. O que leva a um interessante paradoxo: dos portugueses que consideram outros incompetentes, uma parte é constituída por não assumidos incompetentes, o que os torna desde logo incapazes de reconhecer a incompetência alheia. Certo? Assim, se tentarmos identificar os incompetentes com base no número dos que os consideram como tal, temos desde logo o problema de saber quantos destes são, eles mesmos, incompetentes. A óbvia falácia é a da circularidade e a conclusão, fatal, a de que não poderemos nunca com segurança identificar os incompetentes, principal fonte da incompetência que tolhe o país.

E qual é afinal o problema da incompetência? Há anos contava-se uma história, cuja fonte primeira sou hoje incapaz de identificar e que vou agora tentar reproduzir. Imagine o leitor uma organização qualquer, fábrica, banco ou repartição. Uma determinada unidade dessa organização, com quota-parte importante nos seus (bons) resultados, tinha como único empregado uma senhora já entradota (perdão, experiente), a que chamarei para efeito desta crónica “senhora muito competente”. Aplicando-se à letra o princípio de Peter – ver abaixo –, a senhora acabaria por ser promovida e, em consequência, tornar-se-ia incompetente. Mas tal era a sua importância na organização naquelas exactas funções que nunca o foi.

A organização cresceu e prosperou, em boa parte graças à senhora muito competente. Foram criados novos departamentos, contratada gente; tempos de vacas gordas. Felizes com o trabalho da senhora muito competente, os responsáveis presentearam-na com uma secretária (que ela não solicitara) e depois com um assessor (primo do chefe), de que ainda precisava menos. Mas continuou alegremente a trabalhar, sem se queixar (fez mal…). Os responsáveis aperceberam-se então que a unidade tinha dimensão e importância suficiente para se tornar um departamento e convidaram o antes assessor primo do chefe para o chefiar; explicaram com amizade à senhora muito competente que não podiam prescindir dos seus serviços a fazer o que sempre tão bem fizera. Ela aceitou tudo com felicidade e boa disposição (as pessoas competentes são em geral bem dispostas) e continuou a trabalhar alegremente e a criar riqueza para a organização.

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A certa altura, tendo a organização inchado desmesuradamente – e as vacas emagrecido demasiado -, os responsáveis pediram a uma consultora prestigiada um estudo sobre as causas dos maus resultados. O trabalho, que custou os olhos da cara, chegou a uma conclusão inequívoca: pessoal a mais. Era preciso fazer um urgente “downsizing” (do relatório, na tradução portuguesa). A senhora muito competente, demasiado velha (desculpem), cara de mais, relacionada de menos, foi despedida.

Vamos por partes: o problema da incompetência é que os incompetentes – porque não há incompetência sem eles – detestam os competentes. São incapazes de reconhecer mérito a quem o tem, pela ameaça que representam (para eles, incompetentes). Laurence Peter descreveu (ou caricaturou, não sei) a incompetência da seguinte forma: numa estrutura hierárquica todos tendem a ser promovidos até atingir o seu nível de incompetência. Duas consequências imediatas: a seu tempo, todos os lugares de uma organização virão a ser ocupados por incompetentes; o essencial do trabalho é feito pelos que ainda são competentes. Estes, portanto, ou se tornam incompetentes… ou são despedidos. Foi o que sucedeu à senhora muito competente. Claro que não é bem nem sempre assim. Mas é um bocadinho…

No dia 22 de Fevereiro de 2002, num artigo intitulado “O elogio da incompetência” que publiquei no Diário de Notícias, onde tinha então uma coluna, escrevi (e desculpem a imodéstia da auto-citação): “trata-se de reconhecer e premiar o mérito, castigando (despedindo) os incompetentes. O problema, como diria La Palice, é que há um problema: quem declara a incompetência? Alguém se reconhece incompetente? Em Portugal, incompetentes são os outros.” Permitam-me uma confissão: já várias vezes, com honestidade, me questionei sobre a minha própria competência nas funções que desempenhei ou desempenhava. Nunca me achei incompetente, mas lembro-me bem, depois de as exercer – provavelmente nunca enquanto as exercia -, de chegar por vezes à conclusão de não ter sido suficientemente competente nelas, por razões distintas que não vêm à colação; menos competente do que seria o padrão que eu própria ambicionava, menos competente do que possíveis alternativas, menos competente do que o competente que era esperado eu ser, não sei, confesso, mas isso confesso. É um exercício que, tenho a certeza, permite a cada um de nós progredir, reconhecendo:

“Eu incompetente me confesso”. Seremos capazes?

Post-scriptum: Um desafio aos leitores Proponho um pequeno exercício… que cada leitor pense em 10 amigos/conhecidos da sua lista (telefónica, e-mail, etc.) e tente identificar desses 10 quantos, em consciência, com sinceridade e sem preconceitos, considera incompetentes naquilo que fazem (mas não lhes diga!!!). Se quiser, escreva o número (x em 10) em comentário a esta crónica ou, se preferir, envie para paulosande.gab@gmail.com. Publicarei o resultado neste jornal numa próxima crónica. E se quiserem ajudar a tornar este pequeno exercício mais significativo, partilhem esta crónica com amigos. Atenção, isto não é uma sondagem nem um estudo de opinião  científico, apenas uma curiosidade: quantos incompetentes julgamos nós existir à nossa volta? Uma curiosidade… mas séria.

PROFESSOR DA UNIVERSIDADE CATÓLICA – ESTUDOS POLÍTICOS