Quanto do armamento russo que agora mata ucranianos, como dantes matou sírios, foi vendido pela Europa e EUA? Quanta tecnologia europeia e americana (e chinesa) está nos mísseis e tanques russos? Quantos desses foram financiados indirectamente pela Europa? Será que podemos armar e capacitar um regime que há muito sabíamos ser autocrático e fingir que temos as mãos limpas?

Os ares da guerra extremam posições, trocam a mentira rotineira pela propaganda marcial e levam-nos a divisar a preto e branco este nosso mundo de cinzentos. Não se reparte culpas entre invasor e invadido, mas o daltonismo moral, que tudo explica com “eles são maus”, obsta à introspecção que nos permite aprender com os erros e saber distinguir entre o progresso esquivo e a agitação do enfermo que se vira e revira na vã esperança de encontrar alívio.

Apologia do tirano

Conta-se que a reforma agrária de Mao Tsé-Tung foi uma tragédia indescritível muito por causa dos seus adjuntos que, encarregados de reportar os trágicos progressos ao chefe mas talvez tomados por um certo apego existencial, nunca lhe disseram: “Mao, antes te tivesse dado uma caganeira”.

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As pessoas comuns, pelo menos as mais afortunadas, têm alguém que nos momentos de maior euforia lhes diz “mas não esqueças que és mais burro do que as pedras da calçada”, conselho inestimável para manter os pés assentes na dita. Já os tiranos, esses pobres diabos, são privados dessa graça; os seus opositores esfumam-se, os media obedecem, e o sistema judicial ajoelha. Incontestados na sua fortaleza de gelo, arvoram-se superiores ao comum macaco enfarpelado, não cuidando que, tirano ou tamanqueiro, a prazo todos são repasto para vermes.

O caso contra a hipocrisia

A (Social-)Democracia é a maior invenção da humanidade e não há sonho mais sublime do que o de Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Como a sua óbvia superioridade moral obriga à mais alta fasquia, é extremamente grave quando o democrata tem os princípios na boca e a hipocrisia no coração. E casos assim são tudo menos raros, senão incorramos num pequeno exercício de memória, essa actividade subversiva e tão prejudicial ao autómato feliz.

Nos anos 90, vários líderes ocidentais garantiram à Rússia que a NATO não se expandiria para Leste, tendo-se depois feito tábua rasa da palavra dada. A mesma NATO bombardeou a Sérvia com bombas de fragmentação até lhe excisar o Kosovo. O Iraque foi invadido por três países da NATO à revelia da ONU. E, já que falamos da invasão do Iraque, impõe-se evocar o espantoso caso do nosso bom Durão Barroso, que saiu de Lisboa opondo-se à invasão e voltou convencidíssimo da sua necessidade, pois havia testemunhado as provas das armas de destruição massiva que afinal nunca existiram. Talvez o “Cherne”, no recato da Sala Oval, tenha aceitado o charuto do Presidente americano como prova suficiente — não sabemos — mas o que é certo é que em poucos anos passou de humilde Primeiro-Ministro português, a Presidente da Comissão Europeia, e finalmente subiu a insigne Goldman Sachs.

Outra conduta muito “russa” é a duplicidade na lida com certos regimes; por exemplo, Israel e Arábia Saudita gozam das melhores graças ocidentais, ainda que um oprima sistematicamente os palestinianos e seja recordista em resoluções da ONU no lixo, e que o outro trate as mulheres como mobília e alimente a guerra permanente contra os xiitas. Já o Irão, onde as mulheres até podem conduzir (o escândalo!), faz parte do “eixo-do-mal”. Só faz distinção entre filhos-da-mãe bons e maus quem pertence à mesma laia.

E que dizer do esfregar-de-mãos com que recebemos tudo o que é oligarca? (Ou, para ser mais exacto, tudo o que é rico.) Assistimo-los servilmente na satisfação de cada capricho, seja um simples luxo bem merecido ou a singela ocultação de património, e aceitamos o seu dinheiro como passaporte universal que abre todas as portas e cala todos os pudores.

E nem falemos do contraste no acolhimento a refugiados ucranianos e sírios. Expliquemos-lhes que não é por serem ligeiramente menos brancos, mas sim por serem menos próximos, e portanto um pouco menos humanos.

A lição

Os bons exemplos inspiram; a hipocrisia envenena.

Crucifique-se os insinceros (metaforicamente), começando por estancar os putinatos que a cúmplice extrema-direita vem instalando por cá, para que sejamos vistos pelos outros como nos vemos a nós próprios.

Projecte-se um novo tratado entre democracias onde cada qual se comprometa a não vender alta-tecnologia a terceiros, a não permitir que as trocas comerciais com autocracias ultrapassem individualmente os 5% do PIB, e a desconfiar do dinheiro envolto em enxofre. Deixe-se a porta aberta a todos quantos pratiquem a boa higiene: eleições livres, imprensa independente, separação de poderes, respeito pelos direitos humanos, etc, para que a pertença ao clube seja desígnio para democratas e óbice para tiranos.

Será esta uma ideia utópica? Será isto mais absurdo do que a Ucrânia ter vendido armas à Rússia já depois da anexação da Crimeia? Mais a despropósito do que a diplomata americana que se permitiu propor nomes para o governo ucraniano pós-Euromaidan? Mais caricato (e irónico) do que Edward Snowden, culpado de denunciar a vigilância “à chinesa” do governo americano, só ter encontrado refúgio na Rússia?

A Carta dos Direitos Humanos também foi em tempos considerada utópica e, mais a mais, nem três guerras mundiais foram precisas para que fosse aceite unanimemente.

Filhos da mesma mãe

O mal está feito. Milhares já morreram, milhões têm a vida destroçada, e a Europa armar-se-à até aos dentes em poucos anos — e nenhum exército caro fica ocioso por muito tempo, tal como vimos com o americano, o russo e em breve com o chinês e o europeu. Com o arrastar e encarniçar da guerra aumentam as probabilidades de um dos três lados fabricar um pretexto para a NATO intervir (a utilização de armas não-convencionais é uma excelente razão), e sabe-se lá o que daí virá. Que as gerações futuras nos perdoem!

Estejamos gratos por esta nossa democracia hipócrita e decadente, uma benção que os russos infelizmente não têm, mas nunca esqueçamos de que não somos nem melhores nem piores do que eles. Jesus Cristo, provável autor da Mensagem mais revolucionária de sempre, afirmava que somos todos irmãos, e essa é uma forma particularmente elegante de dizer que somos todos iguais e todos uma merda. E isso vale para russos, alemães e togoleses.