Estive há pouco mais de uma semana, por breves horas, na Ucrânia. Cheguei por Varsóvia, onde fui a um dos maiores centros de acolhimento de refugiados da capital polaca, passei por Lublin, nos noturnos oito graus negativos da central de camionetas, onde passavam e paravam os autocarros vindos da Ucrânia com centenas de famílias a bordo, mulheres e crianças, essencialmente, num fluxo incessante, dia e noite, sempre, sem parar.

Estive ainda na fronteira de Dolchobyczow (a localidade do lado polaco), também no centro de acolhimento. E na fronteira propriamente dita, para a atravessar, primeiro para o lado de lá, para a Ucrânia, depois de volta para o lado de cá, para a segurança da Polónia, da União Europeia, da paz.

Sim, estive por breves horas na Ucrânia, na pequena cidade de Sokal, onde deixei ajuda humanitária. Estive num país em guerra, barbaramente agredido pelo seu maior vizinho, uma Rússia imperialista, dirigida por um louco autocrata com delírios e esquizofrenia.

O que mais me marcou, o que ainda continuo a rever todos os dias, são as mães e as crianças. Tantas mães, mulheres jovens, tantas crianças pequenas, de colo, tanto futuro a fugir dum presente que todos julgávamos definitivamente remetido ao passado.

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Tanta inocência a trazer da vida apenas uma pequena mala, uma mochila, a respiração e o bater do coração. Tudo o resto, ou quase, tiveram de deixar para trás.

Deixaram para trás as suas terras, as suas casas, as suas vidas.

Os seus homens. Maridos, filhos, pais. Os homens ficaram, para combater. Algumas mulheres também. Para defender aquilo em que acreditam. Acima de tudo, para defender a liberdade.

A liberdade que um homem, um povo, têm para escolher o seu caminho.

A liberdade que um país soberano tem para escolher ser democrático, liberal, e não viver submisso, controlado, sob “esferas de influência” e esmagado pelas botas opressoras seja de quem for.

É ridículo o argumento de que a Rússia se sentia ameaçada, acossada, pela mera hipótese de alargamento da NATO à Ucrânia. Isso ameaçaria a Rússia em quê, exatamente? Será que a malvada NATO iria, a seguir, invadir Moscovo e lançar os tanques de guerra até aos confins do Kamchatka?

Quem é que, com um mínimo de bom senso, acha este argumento da “ameaça” entendível?

Não é a NATO que Putin não pode admitir nas suas fronteiras. O que o facínora russo não consegue aceitar é que, às portas da Rússia, prosperem democracias liberais, haja espaço para todas as liberdades, vivam pessoas donas do seu próprio destino, nações que escolhem o que querem ser com base na vontade do seu povo.

E nós, o que não podemos continuar a admitir é que, em pleno século XXI, numa sociedade livre, tolerante, democrática, de liberdade, haja quem ainda procure justificar as invasões, as agressões, os mísseis, as bombas, a destruição, a guerra, a morte, com base em visões do mundo que provocaram calamidades, pobreza e sofrimento, sobretudo, e que deviam ter finado com a “glasnost”, a “perestroika” e a queda do muro de Berlim.

Todos os argumentos que ainda se vão ouvindo na tentativa de procurar (inexistentes) justificações para o bárbaro e cruel ataque de Putin à Ucrânia fazem-me lembrar uma tragicomédia muito bem conseguida, o filme “Good Bye, Lenin”, em que um filho, para tentar preservar a mãe de novo ataque cardíaco, faz encenações magistrais para que a progenitora não perceba que o “bloco soviético” caiu enquanto ela estava em coma no hospital.

Putin é como este filho, quer fazer crer a mãe Rússia que o mundo ainda vive nos quadros mentais da guerra fria e do imperialismo russo e soviético. Mas não. Isso já não existe. Caiu. Como o muro.

E como o muro caiu, ninguém pode ficar em cima dele, sem escolher um lado.

Temos de escolher um lado, saber inequivocamente de que lado estamos. E quem acha que se está melhor do lado de lá, pois que se vá. A Rússia saberá receber-vos de braços abertos e com um abraço. De urso. Russo.

É fundamental, ainda assim, saber que muitos russos, infelizmente ainda não a maioria – também porque não há liberdade de expressão, há censura na informação e repressão da oposição – estão contra Putin, contra a barbárie, contra o déspota louco que ameaça destruir o mundo.

Ganha novo sentido a canção de Sting. I hope the Russians love their children too.

I know they do.