Imagine o leitor um mosaico. Milhares de fotografias. Gente comum. Todos diferentes, todos iguais. Alguns favorecidos, outros traídos pelas circunstâncias que definem a vida de cada ser.

Um gendarme (polícia) branco oferece-se em troca de um refém e é morto pelo assaltante, um muçulmano jihadista. Um herói, pelo menos durante o tempo que durar a homenagem.

Uma mulher brasileira negra, lésbica, é executada em pleno centro do Rio de Janeiro, o que provoca uma comoção geral. Estranha-se que num país em que são mortas a tiro dezenas de milhares de pessoas por ano, a sua tenha despertado tanta comoção? Será por ela ser comunista, negra e lésbica, numa reacção orquestrada pela esquerda radical e comunitarista? Pois eu acho, não posso dizer mais, que ela morreu por ser vereadora da Câmara e acusar a polícia militar de assassinar impunemente jovens negros nas favelas. Talvez esteja errado, eu e o Washington Post (esse perigoso jornal comunista), que a apelidou de “símbolo global”.

Uma centena de famílias foi notificada pelo proprietário, a Fidelidade, de que deverá desocupar as casas em que vivem no prazo de dois anos. Ora a empresa tem razão, em nome da boa gestão e dos objectivos corporativos. E tem a lei a seu favor. Mas para onde irão os desalojados de Loures?

Um rapaz entrou num colégio de Parkland armado com um rifle semi-automático e demorou menos de 7 minutos a matar 17 colegas. Nos EUA, sucedem-se os tiroteios com vítimas mortais. Nos últimos dias, centenas de milhares de norte-americanos, em mais de 800 desfiles e manifestações liderados invariavelmente por jovens, exigiram o fim da violência armada. E o controlo das armas. Colion Noir, apresentador da televisão da Associação Nacional do Rifle (NRA), chamou às manifestações “reality show”. E disse mais: ninguém saberia os nomes dos sobreviventes do massacre de Parkland se os seus colegas e amigos não tivessem sido mortos.

Cambridge Analytica. O que tem isso a ver com o mosaico de gente comum? Pessoas como nós. Se calhar, nós. 50 milhões de perfis, com números de telefone, amigos, emoções, gostos e desgostos, postos ao serviço de objectivos suspeitos sem seu conhecimento. Terá Trump sido eleito graças a eles? E o Brexit, obra sua? E a Rússia, apoia-se neles? 50 milhões de pessoas, pelo menos, um mosaico de vidas expostas, segredos revelados, destinos manipulados.

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Um jovem da classe média vive com os pais. Trabalha e ganha bem para a idade, pelo menos 3 vezes o salário mínimo. Há um mês, anunciou aos pais pretender viver com a namorada, arrendar casa, começo de caminho. Procurou um apartamento, pensou em 100 m2 num sítio simpático de Lisboa. Ao fim de um mês, o melhor que encontrou foram 85m2 em local menos simpático por 850 euros mensais. Mas só por um ano. O pai ajudou-o com as contas: dos 1300 euros limpos, sobram 450, gás, água e luz são mais uns 150 mês, 80 de gasolina (metade para o passe), pelo menos 100 para comida e consumíveis da casa, os almoços são na cantina da empresa, a 4 cada soma 80 ao mês, vá lá que lhe pagam o telemóvel, dá os 40 que sobram à namorada que não trabalha. O rapaz dormiu sobre o papel com as contas e, no dia seguinte, anunciou que ficava lá em casa mais uns anos. Por favor, que não lhe cortassem a mesada.

Em França, faz furor a disputa entre o governo e a editora Gallimard, que quer publicar os textos anti-semitas de Louis-Ferdinand Céline, colecção do início dos anos 30 que defende a exterminação dos judeus. Céline, um dos maiores escritores franceses do século XX, autor de “Viagem ao Fim da Noite”, foi também um notório (e condenado) colaborador nazi.  Há críticos e há defensores da ideia, estes considerando que mais vale contextualizar os textos do que esconde-los, sob pena de acabarem a circular sem rede na rede global, aqueles opondo-se à cobertura de respeitabilidade que a chancela da Gallimard lhes poderia conferir.

Uma amiga minha é indefectível da Uber e outras plataformas de transporte. Acha os taxistas antipáticos e os táxis sujos e velhos. Detesta-os. Contou-me há dias a seguinte história (real): no eixo Norte-Sul, ao sair para a 2ª circular, terá irritado um condutor, que a seguiu em fúria, ziguezagueando e fazendo obscenos sinais. Após uma perseguição de uns quilómetros, o iracundo condutor cortou-lhe a passagem, obrigando-a a parar. Acto contínuo, num ápice, um táxi parou ao lado deles e o taxista, “senhor de uma certa idade”, correu para o carro do outro, do qual o condutor iracundo nem tivera tempo de sair, e começou a esmurrar o capô, intimando-o em linguagem vernácula a deixar a minha amiga em paz. De iracundo o condutor fez-se temeroso e arrepiou caminho. A minha amiga seguiu o seu salvador durante algum tempo, até não haver sinal do causador da zizania. Agora adora taxistas. Pois claro.

A vida é um fósforo aceso que o vento da vida apaga num fósforo. E é preciso brilhar enquanto ele arde, depois é tarde. No mosaico de nomes pascal todos brilham e igualmente se apagam, mas o ódio só pode ser combatido com amor, por heróis, jovens e velhos, os anónimos desta crónica. Heróis como os que marcham contra as armas, como Beltrame, no amor da Pátria e do semelhante, como o taxista anónimo em desinteressada defesa do indefeso.

Na vida há ódio, como o de Céline pelos judeus ou dos radicalizados por toda a gente. E há amor como o do taxista, ou o de Arnauld Beltrame, que trocou a vida pela de outro ser humano. Há esperança, como a do filho do meu amigo, e desesperança, como a do filho do meu amigo. Na vida há ódio, como o dos assassinos em massa, dos polícias que matam inocentes e activistas, sejam de que cor forem, qualquer que seja a fé que professem ou a ideologia em que crêem. E há o progresso que vem com a tecnologia, as redes sociais, a inteligência artificial, mas também a ganância e a exploração da inocência e ignorância alheias, como no caso da Cambridge Analytics (a ponta do icebergue, nem sequer a mais afiada). Há a estupidez dos que negam a evidência, seja a de que o plástico não é bom para os Oceanos seja de que as armas matam e só para isso servem. Há o medo dos habitantes de Loures e dos bairros velhos de Lisboa, mas também a generosidade das corporações e a firmeza dos governos. A vida é um mosaico sem fim de rostos como os nossos, da nossa gente, boa ou má.

E é feita de coincidências: Marielle, do Rio de Janeiro, perdeu a vida assassinada por desconhecidos (?), em nome da sua fé nos homens e mulheres sofredoras das favelas. Marielle, mulher de Beltrame, perdeu o marido assassinado por um jihadista. E explicou assim o seu gesto de abnegação: “Ele sentia-se intrinsecamente gendarme, o que para ele significava proteger. Mas não pode separar-se o seu sacrifício da sua fé pessoal. É o gesto de um gendarme e é o gesto de um cristão”. A fé, o amor pelo próximo e por Deus, sem ser a única, longe disso, continua a ser uma poderosa arma contra o ódio. Mas o ódio e o amor não se devem confundir, sob pena de ser zero a sua soma. E o zero não se multiplica, nem se divide.

Mosaico de vidas, de gentes, pessoas. Boas e más. A nossa Humanidade, em Tempo Pascal.