“Você sabe quem eu sou?”.

O polícia, ocupado a escrever o auto, não pareceu surpreendido com a interpelação, como se estivesse habituado a ouvir com frequência a pergunta. Olhou para o homem, um sujeito nos seus trintas com ar alucinado, a barba por fazer, uma t-shirt com os dizeres “Top of the world” e os olhos raiados de quem passara uma noite divertida nos bares de Vilamoura, e acenou com a cabeça. Não, dizia o gesto, acompanhado de um sorriso de autoridade ainda assim tolerante.

“Mas sabe quem eu sou ou não?”, insistiu o outro num movimento súbito e gingão, como um equilibrista que de súbito perde o pé. O agente, cuja paciência não parecia infinita, fez um novo gesto com a mão, imperioso, a mandar parar o cidadão. “Eu sei que o senhor acusou álcool no sangue e não vai poder continuar a conduzir”. O jovem, porque jovem era, ficou por um momento calado, e quieto, até se lembrar de quem era e logo retorquir: “Isso é o que o senhor pensa, senhor guarda, e pensa assim porque não sabe quem eu sou!”.

Dei mais dois passos em direcção ao carro polícia (ou melhor, deu um para a direita e outro num movimento oblíquo para o lado oposto, pelo que praticamente não saiu do sítio) e questionou com autoridade a autoridade: “Quer saber quem eu sou, ou não?”. Desta vez o agente, com alguns anos a menos do que o condutor, fez um sorriso, pôs de lado o papel que estava a escrever e anuiu, sim, quero, disse. E o outro, com altivez, declinou um nome conhecido: “Eu sou fulano de tal”, com ênfase no de tal, ou melhor no de.

O polícia teve uma hesitação. Perante o olhar de gozo do cidadão – “vês, vês, eu sabia que ias recuar”  recuperou os documentos que estava a consultar para escrever o auto e exclamou: “Meu deus tem razão, senhor condutor”. O outro deu mais dois passos para a esquerda e um para trás, quase tropeçando. Equilibrou-se a tempo e encarou o polícia, mão na anca. O poder do nome (de um nome com poder)! Os restantes circunstantes, todos em fases mais ou menos avançadas da respectiva avaliação do grau de alcoolémia, observavam a cena com um ar entre o resignado e o indignado (um ou outro mantinham um ar pensativo, como que a avaliar o peso do respectivo nome).

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“Tem razão, senhor condutor”, repetiu o jovem agente a apontar para o auto, “escrevi o seu nome sem o de, um erro imperdoável”. Estendeu o papel, com um sorriso imperscrutável que nenhum adjectivo definiria, e concluiu “mas já está corrigido, felizmente”. E acrescentou, com um ar de autoridade indiscutível: “Agora agradeço que entre para o carro patrulha, o senhor condutor está detido por condução com um grau de alcoolémia superior ao permitido por lei”. E ele próprio abriu a porta traseira direita, rematando, quase com uma vénia, “faz favor, senhor fulano DE tal”.

Entre todos os possíveis argumentos de autoridade, a forma genérica “sabe quem eu sou?” é das mais ouvidas. Há inúmeras variações: “o senhor sabe quem eu sou?”, ou “faz ideia do que lhe posso fazer?” etc., ad nauseum. Há depois o subtil “quem é o seu comandante?”, a insinuar poderosas cumplicidades e destinos fatais. Menos eficaz mas recorrente é a pergunta “diga-me o seu nome e número”, ressonante de impotência e como que um derradeiro recurso, até porque em geral quem a faz não tem nome para ostentar e não sabe verdadeiramente o que fazer com o nome do funcionário (de repartição, finanças, polícia, etc.).

Há ainda a versão alargada “não? não sabe quem eu sou? Mas conhece de certeza o meu pai? Não? E o meu avô, o almirante coisa e tal? Aah!”. Às vezes penso que quem usa argumentos assim em geral nada tem para além do nome (pois uma rosa com outro nome…) e nem chega aos calcanhares de quem questiona, seja quem for; digo eu, que nestas coisas das crónicas de verão sou muito superficial.

Um argumento de autoridade não é necessariamente uma coisa má. Um argumento de autoridade pode ser, por exemplo, a invocação de um terceiro, reconhecida autoridade na coisa em discussão, dando maior força à ideia expressa. É comum usá-los em crónicas e artigos como estes, e são úteis para enquadrar a questão e fixar os termos respectivos.

Regressando à fórmula benquista “você sabe quem eu sou?”, se a pergunta varia – sem mudar quase nada – já as respostas podem ter variadas cores e sabores. Ao longo dos anos tomei nota de algumas, mentalmente ou por escrito. “O senhor sabe quem eu sou?”, perguntou um conhecido meu ao porteiro de uma discoteca, que lhe barrava a entrada; como o outro o ignorasse, declinou o nome todo, Fulano de Qualquer Coisa e Tal e Coisa. Retorquiu o porteiro: “Conheço bem, claro. Ele vem hoje?”. Outras respostas: “Não conheço e não gosto”. “Já soube mas já esqueci”. “E eu, sabe quem sou?”.

Mas há argumentos e argumentos. Num tribunal de instrução, há muitas luas, ocorreu a seguinte situação.

O dia ia longo, a furto de carteira sucedia-se briga de vizinhos, sucedia-se desacato na via pública, sucedia-se posse com intenção de tráfico, uma sensaboria de casos, até à chegada de um homem de meia idade, alto e bem vestido com roupa de marca, penteado a preceito. O juiz, já com o depósito da paciência exaurido, leu o libelo de acusação, despachou as testemunhas a grande velocidade, escutou sem ouvir o advogado e o procurador e lá perguntou ao arguido se tinha alguma coisa a acrescentar. Disse este: “o senhor doutor juiz sabe quem eu sou?”.

O cenho franzido do servidor da lei prometia o pior. No mínimo uma reprimenda, no pior dos casos uma nova acusação, por desrespeito ao tribunal. “Não quero saber quem é, o senhor está aqui por causa dos factos que lhe são imputados”. “Mas sabe quem eu sou, ou não?”. E como o juiz nada dissesse, por um momento mudo, de puro espanto pela ousadia do réu, acrescentou “sou o Luís (qualquer coisa)”. “Eu sei”, retorquiu o outro, “tenho aqui o acto de acusação e ouvi o seu nome”, “e então sabe quem eu sou ou não?”.

“Não sei nem me interessa”, disse o juiz em tom final, a acabar aquela inusitada conversa. Tinha pressa de concluir, via-se, e aquela bizarria do Luís (qualquer coisa) não podia durar. E foi então que a coisa descambou: “ó homem, olha para mim”.

A sala de audiências gelou. Não é hábito arguidos e réus dirigirem-se assim aos juízes. O meretíssimo abriu muito os olhos, um gesto que todos naquela sala sabiam ser precursor de uma explosão. Um anjo passou, o tempo suspendeu-se, a expectativa atingiu o auge. Foi então que o réu se explicou:

“Andámos juntos no colégio, caraças, tu eras o lambe-botas, fui eu que te pus a alcunha”. O suor invadiu a cara e a alma do lambe-botas. Imagens de um miúdo matulão que lhe batia no recreio e o insultava à frente dos colegas invadiram-lhe a mente, recordações de antigos pesadelos com o outro a persegui-lo e ele a fugir-lhe, ou a tentar; persignou-se – aquilo não lhe estava a acontecer, lia-se-lhe no rosto. “Sou o Luís (qualquer coisa), ó lambe-botas”.

Tinham de facto sido colegas. E para lá das imagens do bullyer primordial do tempo em que o bullying não tinha nome, sobrava-lhe apenas aquele resumo de vida cuja principal característica parecia ser a utilização compulsiva de cheques sem cobertura. “Ah sim, estou a reconhecer-te”.

Nesse dia o juiz foi especialmente brando, espantando os funcionários judiciais que há muito o acompanhavam e indignando o procurador. Um amigo comum jurou que viu sair os dois do bar mais próximo, ziguezagueantes, muito mais tarde. Via-se à distância o Luís (qualquer coisa) a levar o lambe-botas a reboque, bem seguro nos seus braços de colega reencontrado.

Do que se conclui que, às vezes, não é má ideia puxar da manga um ou dois argumentos de autoridade. O poder que tem um nome!