Ponto 1: Povoa Portugal, paraíso à beira-mar plantado, uma raça de gente que espreita o mar e sonha com viagens, ousadias, e para aléns sem fim nem fronteira. Gente descendente de celtas (iberos), romanos, visigodos, judeus, árabes. Cá todos vieram, até vikings a descer a costa em apoio às cruzadas, fenícios antes dos tempos, turistas nos tempos de agora.

É esse povo, em geral, de tez morena e dimensão mediana. Há não muitos séculos, abriu as rotas do Mundo, numa aventura a que chamaram saga: as Descobertas. Os brasileiros chamam-lhe Achamento, sentem-se achados, ou desachados, filhos de pai nenhum, mesmo os netos de avós transmontanos ou filhos de mães algarvias, portuguesas.

Dizem-nos hospitaleiros. Orgulhosos. Valentes. E desorganizados, teimosos, ligeiros. Dizem-nos com escassa auto-estima. A razão para tantos penares, para o sub-desenvolvimento atávico – sempre na cauda da Europa -, seria um sentimento de inferioridade que nos limita. Já diz a graça (que pouca graça tem): não é sentimento, não, é inferioridade mesmo.

Os portugueses sentem-se inferiores. Sem auto-estima. Foi tema de uma conferência há anos, não muitos, em que participou Vasco Pulido Valente. Disse: “Falta de auto-estima qual quê, o problema dos portugueses é terem-se em alta conta”. Ou seja: terem excesso de auto-estima.

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Em que ficamos?

Ponto 2: Se de facto temos pouca auto-estima, qual será a razão? Diz-se que Portugal tem estado desde sempre, com raras e pontuais excepções, na cauda da Europa em termos de desenvolvimento económico e social. Os números confirmam: se em 1913 o Produto Nacional per capita português a preços constantes era 45% (menos de metade!) do dos países desenvolvidos, em 1975 era ainda menor, de 38% (dados de Bairoch, citado por Jaime Reis). Andava pelos 50% quando aderimos à União Europeia, em 1986.

Foi sempre assim? No século XIX vivemos em constante subalternidade, exportando produtos primários e importando, quase sem restrições, produtos manufacturados ingleses, por imposição da Inglaterra; Portugal pouco se industrializou, o que pode explicar em parte a crescente divergência com os países desenvolvidos. Acresce, como também explica Jaime Reis, que as estruturas sociais e mentais da época eram avessas a transformações, persistindo no país uma sociedade “aristotélica e religiosa”, herdada do antigo regime.

O mal vinha de trás; já o Tratado de Metween entre Portugal e a Inglaterra, de 1703, mostrara uma certa incapacidade lusitana para bem se governar. O acordo esteve na base de parte do padrão de importação/exportação referido, marcando o princípio da dependência em relação aos ingleses. Portugal tornou-se, escreveu Oliveira Martins, uma colónia vinícola de Inglaterra. E antes? Houve, é certo, o ouro do Brasil e a corte sumptuosa de João V. Antes, a Restauração, período de dificuldades económicas, precedida de 60 anos de Filipes e decadência da Pátria. Só recuando mais de 400 anos encontramos, algures entre a audácia do Navegador e a sorte do Venturoso, uma época de franca prosperidade. Mas a espaços, sempre a espaços.

Será essa a razão da nossa falta de auto-estima? Se for não deixa de ser justificado, ainda que se possa argumentar que há mais na vida do que a simples fortuna material. Haverá decerto. Antero de Quental, numa das célebres “conferências do Casino”, referiu-se a um espírito peninsular, incluindo pois Espanha, “sem vida, sem liberdade, sem riqueza, sem ciência, sem invenção, sem costumes”: “enquanto as outras nações subiam, nós baixávamos. Subiam elas pelas virtudes modernas; nós descíamos pelos vícios antigos, concentrados, levados ao sumo grau de desenvolvimento e aplicação. Baixávamos pela indústria, pela política. Baixávamos, sobretudo, pela religião”. O catolicismo, segundo Quental, era a principal causa da decadência dos povos peninsulares.

Será?

Ponto 3: Vivemos entre picos de depressão e euforia. Tão depressa somos, para usar uma expressão da moda, “o máximo”, como logo estamos “na fossa”.

Construímos de nós próprios uma imagem idílica e irrealista, termos usados por Eduardo Lourenço no Labirinto da Saudade, escrito pouco tempo após a revolução: somos o povo do Império, o que por mares nunca de antes navegados se foi da lei da morte libertando; somos, lia-se nos livros da primária do Estado Novo, descendentes de heróis, valentes como Viriato, abnegados como Martim Moniz, bondosos como Dª Isabel, honrados como Dom João de Castro, visionários como Dom Henrique, sensíveis como Alcipe. “Morreu o Homem”, disse a Rainha de Castela por morte do rei Dom João II. Somos o Homem com H grande.

E ainda somos mais tudo isso quando fluem as especiarias, o ouro do Brasil, as matérias-primas das colónias, os fundos da CEE: então, somos os maiores. Navegamos os Oceanos, conquistamos os indígenas, construímos um Portugal em África, ganhamos campeonatos do Mundo de hóquei e futebol de praia, corremos nas pernas de Carlos Lopes, montamos uma Exposição nas praias do mar da Palha. Enchem-se Lisboa e Porto de turistas ávidos de conquistar as nossas colinas e as margens dos nossos rios? Somos os maiores.

Até ao dia em que deixamos de o ser e começamos a desconstruir a imagem idílica e irrealista com anedotas e graçolas (também nisso somos dos melhores do Mundo), para contrabalançar “a hipertrofia da nossa autoconsciência” (Lourenço). Com má-língua criticamos tudo e todos, cada um convencido de ser dono da verdade (as redes sociais bem o ilustram), e varremos da memória, por algum tempo, a euforia da auto-estima hipertrofiada.

Ponto 4 e derradeiro: nesta dicotomia – lancinante dúvida – sobre a falta/excesso de auto-estima, radicará o nosso principal problema como povo; algo que, tendo a saudade como recorrente bengala identitária, singular e singularizante, nos tolhe na afirmação de saber quem somos perante os Outros, nos faz duvidar de nós próprios e considerar legítima e redentora a fuga, fugir ao país, às responsabilidades, ao crítico olhar alheio. Estamos permanentemente em bicos de pés sobre as costas de nós próprios, alcançando insuspeitadas grandezas; e é a vertigem, antes da inevitável e recorrente queda. Escreveu a esse respeito Eduardo Lourenço no já referido Labirinto da Saudade: “Nenhum povo e mais a mais um povo de tantos séculos de vida comum e tão prodigioso destino pode viver sem uma imagem ideal de si mesmo. Mas nós temos vivido sobretudo em função de uma imagem irrealista, o que não é a mesma coisa.”

Diz também Eduardo Lourenço que “nenhum povo pode viver em harmonia consigo mesmo sem uma imagem positiva de si”. Mas os momentos de mistificação e mitificação da imagem nacional, sendo pontuais são excessivos, depressa regressando o atavismo do conformismo e da comiseração, numa espécie de eterno retorno. A nossa imagem ideal, de tão irrealista, em nada contribui para uma imagem positiva geradora de harmonia.

Nem tanto ao mar, nem tanto à terra, diz-se. Nem tanta auto-estima nem tanta falta dela. Um bom tema de reflexão para estas primícias de verão.