Estimados leitores,

Os meus leitores habituais, ou mesmo os ocasionais, e até aqueles que decidiram deixar de me ler, sabem que ocasionalmente utilizo uma máquina que me permite viajar nessa extraordinária dimensão que é o tempo.

Com frequência fui ao futuro e, com a escassa claridade que essa tecnologia do amanhã permite, pude antecipar alguns eventos, interpretando o que via, nuns casos correctamente, noutro nem por isso (ou sem isso, de todo). O que os meus leitores não podem saber, pois nunca o disse, é que também visito o passado. Tenho sobretudo curiosidade em conhecer episódios – “estórias” – da História do meu país, este Portugal glorioso e faceiro, valente e timorato, lírico e rudemente objectivo.

Ocasionalmente, nessas viagens, que nem por serem ao passado são necessariamente mais claras do que as visitas ao futuro, descortino uma resposta a interrogações antigas sobre a História pátria, momentos obscuros esquecidos sob os escombros impiedosos do tempo que passa. Mistérios por resolver. Outras vezes, da luz efémera emergem figuras de portugueses cujo nome a posteridade ignora; que nunca conheceu ou já esqueceu.

Nesta 3º ano de crónicas de verão, partilho com os meus estimados leitores algumas dessas viagens e as impressões que delas guardo. Não esperem revelações surpreendentes, só episódios curiosos, descrições imprecisas, pinceladas grosseiras; mas talvez, entre a minha despretensiosa prosa e as contribuições de cada um dos que as lerem, possamos acrescentar um ponto à compreensão sobre a nossa gente: os nossos defeitos, as virtudes que, nossas, nos fizeram quem somos, os homens e mulheres deste pequeno país da extrema da Europa, que nasceu, singrou e se afirmou no Mundo contra todas as expectativas, e apesar delas.

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Estórias que nos lembram a antiga e dura luta dos nossos egrégios avós, bem personificados nos improváveis campeões europeus, e que tantas gargantas cantaram com brio e vontade nas últimas semanas.

A primeira de seis estórias da História de Portugal: Tomé Pires.

Deixem-me que vos fale de Tomé Pires, boticário real, autor da Suma Oriental, primeira descrição europeia da Malásia, da geografia, das plantas e drogas medicinais do Oriente, dos portos de comércio e produtos comerciados em cada reino e porto. O livro, anterior ao de Garcia da Orta (é de 1515), só foi descoberto em finais da década de 30 do século XX por Armando Cortesão. Nele, pela primeira vez (conhecida) se descreviam alguns usos e costumes dos chineses (residentes em Malaca): ““Comem todos os chineses porcos, vacas e todas as outras alimárias; bebem gentilmente toda a sorte de bebidas; gabam muito o nosso vinho e embebedam-se grandemente (…) comem com dois paus, e altamia ou porcelana na mão esquerda, junto da boca (…). As mulheres parecem castelhanas (…)”.

Hoje em dia, é fácil entrar e sair da China, sendo cada vez mais os chineses que cruzam os ares (e por consequência os mares abaixo) e visitam os países dos “laowai” (estrangeiros). Tudo era diferente e bem mais difícil há 500 anos. Em 1513, chegou o navegador Jorge Álvares à ilha de Lin Tin, onde fundeou e colocou um padrão com as armas portuguesas, num local chamado Tunmen (Tamau), ou T’an-mên, a 52 km a sudoeste da actual Macau. Tendo sido bem recebido pelos chineses, Jorge Álvares voltou a Portugal e deu ao rei notícia do feliz evento.

Manuel, “o venturoso”, enviou para oriente nova frota, 8 navios comandados por Fernão Peres de Andrade. Em Agosto de 1517, a armada lusa voltou a Lin Tin, a “nossa” Veniaga ou Beniaga, que quer dizer mercadoria. Na frota de Peres de Andrade ia Tomé Pires, a quem fora ordenado que, ao invés de regressar a Portugal após vários anos a viver no Oriente (em Cochim e em Malaca), viajasse até ao desconhecido reino dos “chins” para aí estabelecer a primeira embaixada portuguesa e, naturalmente, europeia.

Nunca mais voltaria ao seu país. Ficou em Pequim algum tempo, enquanto os restantes portugueses da frota construíam uma feitoria e um forte em Tamau. Surpreendido pela morte do Imperador quando esperava por uma audiência, oposição e intrigas da corte obrigaram-no a mudar-se para Cantão. Entretanto, Simão de Andrade, irmão de Fernão Peres, com a nossa habitual exacerbação do olhar (o comezinho “mais olhos que barriga”), cuidando estar meio a bárbaros, começou a perseguir e apresar juncos chineses. Os chineses prenderam o embaixador Tomé Pires e executaram os seus companheiros de embaixada, pois o vice-Rei da Índia não aceitou negociar a sua libertação, para o que aliás os Ming exigiam… a restituição de Malaca aos malaios (podia lá ser, a jóia do Oriente!).

Proibida a estada dos “demónios” estrangeiros (tal veio a ser durante algum tempo a fama dos portugueses por aquelas paragens), os portos marítimos chineses mantiveram-se-nos fechados durantes anos. Só mais tarde, após décadas de comércio mais ou menos clandestino, os chineses autorizaram os negociantes portugueses a estabelecerem-se em Shanxiachuandao e Lambuijino e depois em Macau, na península a sul da ilha de Xiangshan, hoje Zhongshan. Diz a tradição que essa pequena aldeia habitada por pescadores, foi oferecida aos portugueses por estes terem logrado vencer o temível Zhang Xi Lao e outros piratas chineses, como na documentada batalha naval de 1577, em que, diz-se, Camões participou. A historiografia mais recente aponta antes para uma tentativa de circunscrever a ameaça, aproveitando ainda a capacidade dos portugueses de fazer pontes comerciais, como veio a acontecer com o Japão.

À terra que os chineses conheciam como Haojing, que significa Espelho do Fosso, chamaram os portugueses inicialmente de Povoação e depois Cidade do Nome de Deus de Macau. Macau deriva de Ma Ou, em pequinês Má Ao, baía da deusa Má ou Ni Má, protectora dos navegantes.

Regressemos ao nosso boticário embaixador, desaparecido, incógnito no seu país e, disse-se durante anos, executado pelos Ming. Mas já Fernão Mendes Pinto escrevera sobre a sua libertação e até que teria deixado descendência na China (uma filha, Inês de Leiria). Tinha razão. A sombra do autor da Suma Oriental peripatetiza o Império do Meio anos depois da sua prisão (e libertação), pois a dinastia Ming, ainda que severa e definitiva em matéria de justiça, praticava a magnanimidade e Tomé Pires não fora responsável por qualquer desmando.

Encontrei-o na minha viagem ao passado, por breves momentos. Sozinho num quase tugúrio, sem a filha à vista, trocámos meia dúzia de palavras. Quis apenas, numa voz sumida, quase surda, saber se o seu livro estava a são e salvo em Portugal. Prometi-lhe que sim, gerações por vir louvariam a Suma Oriental como um extraordinário testemunho da sua vida e obra. E acrescentei que, 500 anos mais tarde o seu nome figuraria numa placa de uma rua de Lisboa: Rua Tomé Pires / Boticário e 1º Embaixador Português na China / Séc. XVI.

Estou convencido, mas não seguro, de o ter visto sorrir; terá ele, antigo habitante da Madalena, recordado a cidade onde nasceu, o país longínquo que era o seu e aonde, sabia-o bem, nunca mais voltaria? Ou sorrido à ironia do reconhecimento tardio, longe no tempo, esse mesmo tempo que me levara a ele para uma derradeira palavra em português, e o conforto da certeza de uma posteridade merecida.

Um dos nossos egrégios avós…

Desculpem a confusão das grafias, mas entre chinês, português coevo e actualizações, perdi o norte… da ortografia.