Na última semana uma boa notícia foi o acordo alcançado no Parlamento relativamente a um estatuto dos cuidadores informais. No entanto, é curioso que todo o amplo debate feito em torno desta questão assente em ideias gerais e em números que ninguém consegue confirmar. Por outro lado, o foco nos informais desvia a atenção de um problema tão ou mais grave, o de todos os cuidadores e assistentes pessoais profissionais, muitos deles com pouca ou nenhuma formação, condições de trabalho penosas e remunerações muito abaixo da importância que as funções que exercem justifica.

A primeira questão que importa clarificar relaciona-se com os conceitos; uma forma simples de definir o que é um cuidador é afirmar que é alguém que auxilia outrem, com limitações de autonomia, a realizar as atividades de vida diária. Um assistente pessoal é alguém que desempenha funções similares, mas que ao invés do cuidador, que lidera a relação com a pessoa de quem cuida, está subordinado e exerce as tarefas que lhe são definidas pela pessoa a quem presta serviço.

Naturalmente, entre um trabalho a tempo integral ou a tempo parcial, entre uma formação superior ou a simples tarimba de uma vida de experiência feita, há cuidadores e assistentes pessoais com os mais variados perfis, o que aconselha que se esclareça do que falamos para nos entendermos relativamente aos propósitos que cada um visa alcançar.

Um cuidador ou um assistente informal são, por definição, pessoas sem formação o que não significa que não sejam profissionais, pelo que o debate que tem percorrido o país, deliberada ou casualmente nunca clarificou de forma expressa do que se fala quando se reclama um estatuto ou quando se afirma haver 800 mil cuidadores informais em Portugal.

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A esmagadora maioria dos cuidadores e assistentes pessoais informais são familiares diretos das pessoas de quem cuidam pelo que faria mais sentido denominá-los cuidadores familiares e isso só não acontece porque se procura desvalorizar a responsabilidade da família no cuidado aos seus e se coloca a tónica na responsabilidade do Estado que, segundo alguns, a tudo tem de prover.

Ninguém nega a responsabilidade do Estado nesta matéria, mas também não se pode negar que as famílias, seja qual for a sua configuração, continuam a ter um papel de responsabilidade na educação e no cuidar dos seus membros.

Outro elemento perturbador do debate é o número de cuidadores informais que se diz existirem, 800 mil, número nunca confirmado, mas que repetido à exaustão acaba por ser o que todos utilizam, mesmo sabendo-se que é um fake number.

Agora que parece haver um acordo de princípio, embora longe de haver condições concretas para apoios reais, tudo parece estar a ser discutido com base em dados não confirmados, o que acaba por ser duplamente prejudicial, primeiro porque desfoca a verdadeira grandeza do problema e porque ao não haver dados objetivos é impossível quantificar com rigor os custos sociais da medida.

De positivo, a sensibilidade para encarar o problema e de os apoios visarem familiares, embora seja necessário prever as situações em que as famílias não conseguem assegurar o cuidado e devem poder utilizar o apoio para contratar profissionais que as substituam. Tudo claro e por este motivo fazia mais sentido falar de um Estatuto dos Cuidados Pessoais Familiares do que de um Estatuto dos Cuidadores. O beneficiário não deve ser um membro da família, mas a família em si.

É sabido que há exemplos pouco virtuosos de famílias com membros afetados por limitações de autonomia já previstas na lei e sujeitas a apoios monetários estatais, que usam os apoios para a sua própria sobrevivência coletiva e não exclusivamente para o apoio ao membro que deles necessita e os justifica, mas o tema é de tal forma complexo que não pode agora ser analisado com a profundidade que justifica.

Com o envelhecimento galopante da sociedade portuguesa e as necessidades crescentes de apoio a pessoas com limitações de autonomia de todo o tipo a função de cuidador e de assistente pessoal vão tornar-se cada vez mais necessárias e com as dificuldades crescentes das famílias em cuidarem dos seus, essencialmente pelas mudanças sociais estruturais que têm ocorrido e vão continuar a ocorrer, a necessidade de cuidadores qualificados vai crescer exponencialmente.

Já hoje há cuidadores e assistentes pessoais habilitados com formação superior, caso dos habilitados com cursos técnicos superiores especializados específicos, mas, pasme-se, são equiparados a quem tem habilitações abaixo e não são reconhecidos pelo mercado por não estarem previstas estas habilitações nos instrumentos contratuais e nos regulamentos internos das instituições empregadoras.

Por todas estas razões é mais do justificado analisar o problema globalmente e encarar o momento como um verdadeiro corte epistemológico entre o passado e o futuro desta atividade de cuidador e de assistente pessoal, desde logo, encarando o seu trabalho como uma atividade especializada e os seus profissionais como necessitando de ter uma verdadeira carreira, neste momento inexistente, e um nível remuneratório em linha com as enormes responsabilidades que lhes estão cometidas.

A forma mais apropriada de tratar este assunto com rigor é juntar todas as entidades interessadas no tema, instituições académicas (formadoras), instituições sociais e privadas (empregadoras), Estado (legislador/regulador) e associações científicas e profissionais (forças cívicas) para um amplo debate e elaboração de um documento fundacional de um novo tipo de profissionais cada vez mais importantes para que todos os que têm a sua autonomia limitada possam ser tratados nas melhores condições de conforto, de acordo com as melhores práticas internacionais e, sobretudo, com um total respeito pela sua dignidade, privacidade e direito a uma vida plena até ao fim.

Presidente da Caregivers Portugal – Associação Portuguesa de Cuidadores, e da Escola Superior Saúde Santa Maria (Porto)