1 A pandemia por Covid-19 veio pôr em relevo um facto indesmentível: a tecnologia pode permitir uma maior eficiência e uma resposta mais rápida e personalizada perante as solicitações, obrigando à adopção de novos modelos de organização do trabalho. No caso da prestação de cuidados pelos farmacêuticos, integrados nas suas comunidades, é um desafio todavia maior: a famosa capilaridade da rede de farmácias, muito provavelmente inviável na actual organização, terá que dar lugar à construção de redes de farmacêuticos de proximidade, prontos para, além de prestarem cuidados aos cidadãos, serem agentes promotores de saúde pública, em diferentes domínios: prevenção da doença, educação para a saúde, produção de conhecimento científico em ligação com a academia.

2 Um primeiro aspecto a considerar prende-se com a logística das tecnologias de saúde (medicamentos, dispositivos médicos, terapias avançadas). Até agora, o modelo assentava na distribuição “one size fits all” do produto, cujas dificuldades eram normalmente solucionadas por aumento de escala, conduzindo a maior eficiência e redução dos custos. Para além disso, as exigências regulamentares permitiam manter uma certa estagnação neste estado de coisas, sem consequências de maior. Após a pandemia, com a intervenção de facto de plataformas logísticas digitais e circuitos alternativos de distribuição, e a emergência de novos circuitos de distribuição em proximidade (nomeadamente dos medicamentos hospitalares) exige-se uma reestruturação do modelo que, sem deixar de colocar o cidadão no centro do sistema, garanta que a intervenção diferenciada do farmacêutico acrescenta valor e segurança na utilização das tecnologias de saúde. Não se trata, pois, de mero transporte de embalagens, mas de gerar proveitos para o sistema de saúde.

3 Do ponto anterior resulta uma questão inquietante, mas a que urge responder: como ressignificar o conceito de “dispensa farmacêutica”? Até agora, a dispensa de medicamentos pouco mais significou do que a entrega de embalagens a utentes. Perante uma nova realidade, impõe-se que a valorização do farmacêutico comunitário se faça através do serviço que presta, isto é, através do acto profissional que realiza no momento da prestação de cuidados – a famosa “desmaterialização do acto farmacêutico”, há 20 anos no discurso da profissão e que continua sem ser uma realidade. Isto implica que as faculdades formem profissionais aptos a um exercício profissional baseado na “farmácia clínica” (i.e., centrado na pessoa) e que os farmacêuticos tenham tempo e condições para pôr o seu conhecimento ao serviço da sociedade. A digitalização pode ter um papel instrumental relevante ao libertar a profissão farmacêutica de tarefas burocráticas para se dedicar a este modelo assistencial, que implicará também uma transformação do espaço físico das farmácias: faz algum sentido continuar com o famigerado “balcão” que nada acrescenta, antes pelo contrário, à valorização farmacêutica?

4 Impõe-se, assim, agarrar a oportunidade da “telefarmácia”, definida como a prática farmacêutica à distância através do uso das tecnologias de informação e comunicação. Este conjunto de processos inclui como principais actividades a validação farmacêutica (o que implica o acesso à informação clínica), o seguimento farmaco-terapêutico e a consulta farmacêutica; numa outra dimensão, teremos de estar preparados para o advento da farmacogenómica na comunidade, o que alterará a visão da prestação personalizada de cuidados de saúde na comunidade. Importa que estes desenvolvimentos se façam de forma articulada com os restantes profissionais de saúde (o farmacêutico tem que deixar de ser mera “porta de entrada” no sistema e constituir-se como um primeiro prestador de cuidados nele integrado) e avaliando continuamente os resultados, sob pena da sua eficácia real ficar neutralizada. Para a sua concretização é ainda necessária a capacitação dos profissionais, estando a tecnologia ao serviço desta, mormente no que toca à interoperabilidade dos dados clínicos (garantindo sempre a sua confidencialidade, em harmonia com o regime de protecção de dados e com o código deontológico da Ordem dos Farmacêuticos). Contudo, deverá ser considerada, pelo menos inicialmente, como ferramenta complementar ao cuidado presencial prestado aos utentes.

5 Nem todas as realidades são iguais, mas a necessidade de mudança é transversal. Uma aposta em modelos cuja ênfase esteja em processos meramente logísticos e administrativos, sem geração de valor acrescentado em saúde, não resolve os problemas emergentes. A pandemia por Covid-19 marcou, queira-se ou não, um ponto de viragem no modo como encaramos a prestação de cuidados, especialmente nas sociedades ocidentais, cada vez mais envelhecidas. Os farmacêuticos comunitários têm uma oportunidade única de se fazer valorizar, mostrar e defender o seu papel não só enquanto “especialistas do medicamento”, mas também como profissionais de saúde pública. São eles a primeira linha de cuidados para muitos portugueses: apoiam, informam, aconselham, referenciam. Da sua capacidade de resposta às necessidades dos cidadãos poderá depender uma parte importante da sustentabilidade do sistema de saúde, dando pleno cumprimento à máxima de que são “o braço longo do SNS”.

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