Pequim, 24 de Outubro de 2017, podia ser só mais uma data, mas pode vir a ser o dia que marca a origem de uma devastadora crise que poderá assolar os mercados nos próximos meses.

Quando os europeus acordaram na passada segunda-feira, os Portugueses tinham um presidente de Câmara de direita em Lisboa, os alemães elegeram um governo sem Angela Merkel e a China poderá ter dado ao mundo uma nova crise financeira como a que se iniciou há 13 anos. Se os dois primeiros cenários eram inevitabilidades políticas com a curiosidade de ambos registarem 16 anos de intervalo entre o início e fim de cada ciclo político, já o caso da Evergrande é substancialmente diferente e merece uma análise mais detalhada.

Inúmeros olhos se viraram para a China quando, em Dezembro de 2019, a Covid se apresentou em força ao mundo. A pior pandemia dos últimos 100 anos registou o seu paciente zero em território chinês e espalhou-se pelo mundo num rasto de destruição e pânico social. Muito já se escreveu sobre este tema, e muito será ainda escrito sobre um dos mais desafiantes momentos da nossa história, mas se a preocupação social com a saúde pública é totalmente justificada, existe outro acontecimento, muito menos mediático, que justifica um olhar extremamente atento. Na última semana, jornais e televisões “acordaram” para um problema chamado Evergrande, um nome que até esse momento praticamente nenhum português reconhecia. Tem sido enfatizado o facto de ser a empresa, no seu sector, mais endividada do mundo, os valores surreais da sua dívida ou o facto de a mesma estar em risco de não conseguir ser paga. No entanto, importa ir um pouco mais atrás de forma a que possamos entender que a verdadeira preocupação não deve estar no “default” da Evergrande e sim na enorme “bola de neve” que pode criar uma avalanche destruidora nas economias dos principais blocos, com a Europa e os Estados Unidos à cabeça.

Dentro de um mês estaremos a celebrar o encerramento do 19º Congresso Nacional do Partido Comunista Chinês, que decorreu em Pequim entre 18 e 24 de Outubro de 2017. Lembra-se? está na primeira linha deste artigo. No final dessa semana de trabalhos, os 2280 delegados aprovaram um dos mais importantes documentos estratégicos das últimas décadas: Pensamentos de Xi Jinping sobre socialismo com características chinesas para uma nova era (Thoughts on Socialism with Chinese Characteristics for a New Era).
Para quem não acompanha a política chinesa, podíamos apenas mencionar que foi a primeira vez desde Mao, que um líder chinês colocou o seu nome, ainda em vida, na constituição do partido e viu uma ideologia programática receber essa designação. Se este facto já era, por si só, motivo de enorme destaque, o conteúdo desta “nova doutrina” devia ter recebido honras de abertura em todos os telejornais. Com 14 pontos principais, a visão de Xi fez a China enfatizar o modelo socialista chinês, assustou com o fantasma da desagregação soviética e criou condições para um, ainda maior, controlo por parte do Partido de toda a economia.

O objetivo principal passaria por fazer a transição entre uma economia de rendimentos baixos, pressionada pela necessidade de criação de milhões de postos de trabalho, para uma sociedade com classe média e com sonhos e desejos de maior qualidade de vida. E se objetivos “verdes” foram vistos como importantes para a sustentabilidade do próprio planeta, muito poucos escreveram sobre os perigos de uma política que apontava para um crescimento mais moderado, com uma regulamentação muito mais rigorosa e com a imposição de uma limitação clara (e radical) ao endividamento da economia e dos agentes que dela fazem parte.

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Neste ponto, é importante abordar alguns caminhos que se começaram a desenhar em 2018 e que levaram ao momento em que nos encontramos: alterações nas políticas fiscais e monetárias, a degradação dos indicadores do sector imobiliário e uma decisão consciente de deixar cair as empresas com balanços deficitários, aliás, algo bastante referido no tal Congresso de 2017. Estes caminhos foram cruciais para o estado de morte anunciada da Evergrande.

Os gigantes também morrem

Quem olhasse para a Evergrande há dez anos ficaria impressionado. Com um império único no sector imobiliário chinês – um dos principais motores da economia chinesa e responsável por crescimentos do PIB acima dos 10% -, onde liderava o mercado com uns impressionantes 1300 projetos espalhados por 280 cidades chinesas, a empresa detinha, ainda, interesses em negócios como a produção de veículos híbridos, parques temáticos ou no sector do desporto. Os empregos indiretos gerados pela Evergrande atingiram os 3,8 milhões de pessoas. Se, para quem via de fora, os números eram impressionantes, quando se observava o milagre deste crescimento, encontrávamos uma empresa que suportou todo este império no insustentável pilar da maior dívida de uma empresa do sector no mundo inteiro, com um valor de mais de 300 mil milhões de dólares (algo como 265 mil milhões de euros).

A tempestade perfeita acabou por se formar quando a estratégia de endurecimento das medidas restritivas ao endividamento (aprovadas na tal reunião de Outubro de 2017) se uniu a um crescimento mais moderado da economia (mais um desejo dos congressistas de Pequim) e o mercado deixou de ter a procura necessária para alimentar com liquidez o monstro criado. Sem capacidade para vender e com impossibilidade de levantar dinheiro no mercado, a empresa passou a viver um cenário destruidor de qualquer projeto empresarial: o falhanço junto dos clientes – não conseguindo entregar os imóveis já vendidos (e na esmagadora maioria das vezes já quase totalmente pagos), falhando pagamentos com fornecedores – situação que levou à paragem da quase totalidade das obras em curso – e, na semana passada, ao incumprimento das suas obrigações junto da banca e de investidores.

No meio de um momento de desespero, a empresa chegou a pedir dinheiro aos colaboradores e finalmente implorou pela ajuda do governo chinês numa última tentativa de poder provar que era “too big to fail”. E se este argumento até poderia ser válido (quem não se recorda do nosso BES….) o problema volta a Outubro de 2017, quando os congressistas decidiram e anteciparam que empresas iam cair e que isso até poderia ser útil para uma mais sólida e estruturada economia chinesa. Nos últimos meses investidores e bancos mantiveram a empresa “ligada às máquinas” com a convicção de que o governo chinês iria salvar o gigante, mas se o nervosismo era disfarçado pelos principais atores desta tragédia dos tempos modernos, na última semana esse sentimento deu lugar ao pânico. Hoje sabemos que os responsáveis chineses não excluem o cenário de deixar cair a empresa e deixar tombar a primeira peça de um dominó de alcance e destruição difícil de imaginar.

A China aguenta… e o Mundo?

O governo chinês está tentado a deixar cair a Evergrande e acredita (sendo que os seus responsáveis não esconderam esta intenção nos últimos dias) que a sua economia não será fortemente afetada caso isso suceda. Tenho muitas dúvidas, severas preocupações e algumas desconfianças.

Começo pelas dúvidas. A Evergrande tem registado no seu balanço dívidas que equivalem a cerca de 2% do PIB chinês (este valor pode subir um ponto percentual com as dívidas fora de balanço). Se, por si só, isto já preocupa, deixem-me acrescentar outros três dados: 70 mil investidores privados chineses têm créditos junto da empresa; mais de um milhão de clientes têm casas pagas que não irão receber; cerca de 98% da dívida da empresa é à banca ou a empresas de investimento chinesas. Isto resulta, inevitavelmente, numa enorme dúvida de que as autoridades chinesas não podem verdadeiramente acreditar que o impacto será facilmente absorvido. Passemos então às preocupações (talvez deva mesmo reforçar “severas”). É impossível não acreditar que num mundo cada vez mais global, as entidades financeiras chinesas não tenham já colocado parte desta dívida em produtos estruturados que venderam para fora da economia chinesa. É também impossível de acreditar que os investidores não irão recuar nas intenções de financiarem outras empresas similares e, no limite, o próprio mercado, com todo o impacto que essa ausência de liquidez teria. E, finalmente, é impossível levar a sério a esperança que, mesmo com o regime “democrático” chinês, não exista instabilidade social com tamanha destruição de riqueza.

Para o final reservo as desconfianças. A China já nos habituou a “retirar” empresas do seu mercado interno, como a Whatsapp, Youtube ou Facebook, para poder criar “soluções estatais”. A China tem uma longa tradição de substituir importantes players do mercado, em especial multinacionais estrangeiras, por novas empresas chinesas controladas pelo governo. Tenho, assim, algumas reservas que este movimento de não deixar passar impune as falhas da Evergrande, não seja a base de surgimento de um novo nome para a substituir totalmente, controlado pelo Estado chinês e cumprindo as regras e ideologias definidas e aprovadas em 2017.

Se a China acredita num impacto reduzido e tem, efetivamente, instrumentos que lhe permita minorar esse mesmo impacto, já o Mundo pode receber esta notícia de uma forma totalmente diferente. É verdade que a exposição da banca internacional é de “apenas” 7 mil milhões de dólares. É verdade, também, que o mundo já provou, com a Lehman, que há vida após uma falência. Não podemos, no entanto, esquecer que esta mudança de paradigma da China tem outros impactos. A China, atualmente, alimenta muitas economias de forma substancial, alimenta muitas dívidas (é o maior comprador de dívida dos Estados Unidos, uma economia que atravessa mais uma crise de lockdown, precisamente porque vive ligada à máquina da dívida) e com a sua contração e menor liquidez vai, com certeza, afetar de forma nefasta as economias mundiais. Se adicionarmos a isto o facto de estarmos num período em que os verdadeiros impactos sociais e económicos da pandemia da Covid-19 irão começar, de forma ainda mais visível, a ter efeito nas nossas vidas, então podemos assumir que as consequências serão reais, fortes e provavelmente devastadoras.

Outubro de 2017 poderá ter sido o início de uma condenação à morte de uma das maiores empresas do Mundo, mas se na China isto pode resultar numa bala paga pelo próprio responsável da empresa, teremos de esperar para ver quantos “corpos” poderemos ter de lamentar no Ocidente. E se há quem diga que a história teima em repetir-se, termino com mais uma curiosidade profética envolvendo a data do já mencionado Congresso, 24 de Outubro, uma terça-feira, e a partilha de outra data: 25 de Outubro de 1929, uma… terça-feira, aquela terça-feira negra que deu início à Grande Depressão, que, numa última coincidência macabra, nos liga ao nome da EverGrande…