Se 2020 tem sido um ano difícil em si, também é um fecho simbólico para uma década complicada. Em quase 10 anos, Portugal viu-se em pré-bancarrota, viveu um resgate internacional, assistiu a uma nova era política pós resultados eleitorais de 2015 e, mais recentemente, deixou de, orgulhosamente, poder usar o título de único país na Europa ocidental sem um partido de extrema-direita, que, entretanto, já ocupa a posição de terceira força política nas sondagens. O ano de 2015, poeticamente a meio da década, representa de facto uma espécie de ponto médio.

Se do resgate do FMI e do governo de coligação PSD/CDS se gerou ressentimento suficiente para sarar feridas do tempo do 25 de Abril na esquerda portuguesa e construir uma aliança que até então era impensável, também não deixa de ser verdade que o que se seguiu a isto esteve na origem do rebentar de um fenómeno que a maior parte dos democratas portugueses esperavam não ver: a explosão por cá dos movimentos proto-fascistas que mais recentemente têm assolado a Europa. Desengane-se quem pensa que Portugal vai ficar por aqui. Com uma crise à porta, tal pensamento, mais que ingenuidade, revela sobretudo pouco entendimento de ciência política e ciclos eleitorais.

Da ponta direita do espectro gritar-se-á que é tempo de acabar um viés que define o centro do espectro político em localização claramente à esquerda, causando a condenação de qualquer ação da direita com o mesmo vigor que se fecha voluntariamente os olhos aos abusos cometidos pela esquerda com a democracia. A resposta surge com uma colagem dos anteriores a ideias prevalentes no pré 25 de Abril, desenhando-se ali uma linha entre democracia e o seu oposto.

Provavelmente nenhum dos dois está totalmente errado naquilo que diz, e nesta onda vão-se cada vez mais polarizar os eleitorados adjacentes aos extremos; Portugal ver-se-á cada vez mais flanqueado com alas políticas sem intenções de compromisso ao centro. Pode parecer curiosa esta quase espontânea simbiose, mas tem um motivo muito simples. No centro das visões que cada um dos flancos tem sobre a sociedade, partilha-se um pensamento fundamental: o primado do social face ao indivíduo. Os populistas de esquerda e direita reclamam a posição de defensor de uma sociedade livre, livre da influência tóxica que vêem na outra parte, livre de tudo aquilo que entendem como maligno. No entanto, mais fundamental que a convergência dos populistas numa prossecução de uma sociedade livre é o seu pacto de que ela seja constituída por homens não livres. ​Friedrich von Hayek já havia avisado: nem sempre uma sociedade livre é composta por homens livres. Portugal, ainda uma nação livre, não é uma nação de homens e mulheres livres.

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Enquanto que, de parte a parte, os lados hão-de trocar insultos e acusações de toda natureza, vão ambos certamente fazer da “Democracia” estandarte dos seus movimentos. Defini-la-ão ambos como vontade da maioria. Aos olhos das novas direitas, é legítimo que se restrinjam direitos a minorias: os movimentos sociais pós-materialistas são para eles tóxicos porque são impositivos, e há-que atacá-los quando 51% da população assim pensar. A máxima comum é a de que não se pode impor vontade da minoria à maioria, mas a vontade da maioria à minoria. O que falta entender aqui é que, em boa verdade, nenhuma imposição é legítima de colocar e que, precisamente, não tem de haver, pela força do poder político, predomínio de nenhuma visão, mas a liberdade para cada indivíduo viver a sua vida como quer, na certeza de que terá segurança e será tratado de forma igual pela lei.

Estes movimentos, dos quais o CHEGA hoje é representante máximo, não entenderam uma ideia fulcral: a discussão de moralidade só se põe perante ordens que são premeditadamente desenhadas. Uma ordem espontânea em que cada pessoa é tratada de igualmente perante a lei (aqui, o debate do casamento entre pessoas do mesmo sexo é um exemplo paradigmático) não pode ser imoral porque nela se permite a cada pessoa escolher como agir. O oposto, quando o poder decide quem pode casar, adotar, e segue a imposição da homogeneidade cultural, é sim um cenário passível de ser acusado de imoralidade porque se baseia em usar a força do estado para patrocinar um desenho social premeditado. Erradamente define-se como “ditadura da minoria” uma ausência de ditadura da maioria. Esta democracia dogmática diz-se oposta ao estado autoritário sobre o comando de um pequeno grupo de pessoas, mas diz pouco sobre a oposição ao totalitarismo, possível de se fazer valer com 51% da população. A visão liberal da defesa da liberdade individual materializada na perda de monopólios da decisão e no fim da socialização das esferas pessoais de cada um, só é problemática na cabeça de quem confundiu o que pode ser moralmente julgado e de quem tem arrogância para forçar em outros uma visão do mundo que não seja descentralizada.

Do outro lado, à esquerda, creio que maior parte das pessoas simpatizará com esta visão de mais liberdade social. Não obstante, trocam o sentido do discurso quando entramos na esfera da liberdade política e económica. A causa da igual partilha de recursos, objetivo último dos movimentos descendentes do socialismo, é uma ideia mais ou menos aceite como moralmente correta, como subjacente à paz sobre os homens. Infelizmente, reina a recusa em entender que a ideia da socialização de tomada de decisões pessoais aqui gerada é onde nasce uma bola de neve que faz do indivíduo um peão nas mãos de uma estrutura estatal. A ideia de que o estado tem de impor justiça social necessita de esclarecimentos.

O conceito social, primeiramente sinónimo de “tribal” ou de “nacional”, junto ao termo justiça era, na sua origem, não mais que um pleonasmo. Nesta altura, poderia ser facilmente conotado como algo “bom” ou “ético” porque representava o quadro de regras que no liberalismo clássico via cada homem como igual perante a lei num conjunto de regras abstratas que regiam relações sociais. A ausência de preocupações com casos específicos protege os homens da eventualidade de que a máquina do estado, um monopólio natural de força, possa ser usada para garantir vontades de grupos particulares. A esquerda apropriou-se da palavra “social”, raptou a equivalência do termo com “moral”, e imprimiu-lhe um significado ideológico de visão redistributiva dos recursos, onde todos devem ter parcelas iguais.

O grande problema é que aceitar algum poder centralizado que tem capacidade para definir o sentido do interesse comum, para o especificar em termos de política pública e pôr em ação meios para o atingir, baseia-se em pressupostos cuja aceitação cega roça o absurdo. Assume-se que os mesmos humanos, que os críticos do mercado livre dizem ter racionalidade limitada e moral corrompida na escolha individual, ganham agora conhecimento pleno, clareza de visão e verticalidade moral que permite fazer boas decisões sobre uma comunidade inteira. Citando a famosa frase de Ludwig von Mises: “Quem rejeitar o ​laissez faire com base na falibilidade e fraqueza moral do homem, tem necessariamente que rejeitar qualquer tipo de ação do governo”. O problema do limite de racionalidade tem uma solução no liberalismo: o conhecimento que é detido a nível micro e em pequenas quantidades é transmitido ao mercado pelas decisões que os agentes fazem, e nele, plataforma descentralizada, é transmitida a informação aos demais membros da comunidade, por exemplo através dos preços. Cada pessoa sabe da informação que detém individualmente, e tem no mercado um mecanismo fornecedor de sinais para agir: a visão desta mecânica de coordenação é o que faz o mundo funcionar, a nível pessoal, corporativo e institucional. A ideia da competição vai muito além dos preços por si só, mas também se transmite em sinais que vemos sobre praticamente todas os campos da nossa vida. Assumir que alguém pode romper esta ordem espontânea e subir a um cargo público para definir objetivos sociais específicos é atropelar o facto de que o problema da racionalidade limitada não tem solução fora do mercado. Trata-se do início de uma democracia dogmática, permissiva de que quem consiga reunir o apoio da maioria, passe a ter força de impor um plano social que trata o indivíduo como um peão da persecução de fins definidos por terceiros.

Há pontos de compromisso, há ferramentas empíricas que nos podem guiar sobre o que são algumas boas decisões, há determinadas ações que a larga maioria não questionaria e que, não impondo custo relevante, têm valor humanístico, como o de aliviar o sofrimento daqueles que não podem cuidar de si. Mas o raciocínio exposto revela uma ideia de princípio fundamental para relembrar nas discussões políticas de hoje. Só pode ser objetivo de julgamento moral o que for desenhado por alguém; Não limitar os poderes do estado perante as pessoas impõe uma lógica perigosa ao cultivar a ideia de democracia dogmática como força arbitrária da maioria. Aumentar a intervenção e o espectro de decisões com carácter moral é alargar o campo de conflito e exponenciar os riscos de abuso.

A visão de socialização de decisões abre portas perigosas; o que se passou em Portugal, com a presença de um governo aliado à extrema-esquerda, foi a ampla aceitação, com atitude de particular arrogância, de que a maioria conseguida no parlamento poderia fazer uso do poder como entendesse desde que definisse qualquer ação como estando ao serviço do bem comum e da justiça social. A esquerda tem de entender que questões como impor mais impostos de património, acentuar o controlo sobre as empresas e a sua captura por uma multiplicidade de interesses para garantir não só uma base de apoio eleitoral, mas também uma máquina que a mantenha, é algo ultrajante para quem não partilha da mesma visão. Não pode ser mutuamente exclusivo concordar com mais redistribuição e entender que alguém legitimamente pode repugnar a ideia. O presente fechar os olhos ao nepotismo, corrupção e interferência com a liberdade da comunicação social já tem muito menos defesa possível.

Deste modo, não é surpreendente que se inflamem de raiva aqueles que, tendo visões totalmente opostas às do poder, se vêem totalmente desprotegidos perante a ação do estado e, assim, se queiram organizar para, sobre o mesmo princípio, impor as suas ideias. O feedback de polarização não promete parar e notando: primeiro o crescimento da extrema-direita que em um ano passou de inexistente para terceira força política; Segundo, que Portugal pode estar às portas de uma recessão severa; Terceiro, que em 2019, a taxa de abstenção foi de 51,4%, a incerteza sobre futuro é grande e muitos exemplos pelo ocidente não dão boas perspectivas.

Os portugueses podem continuar a esgrimir discussões de moralidade sobre que ordem social a forçar, ou podem entender que, vivendo em comunidade, os entendimentos do justo chocam e que a única salvaguarda dos direitos de cada um é que o estado deixe de ter poder sobre tanto na nossa vida pessoal. Até lá, estamos à mercê de quem controlar o governo. Em tempos de incerteza, pânico, e instabilidade, sabendo que os espíritos de manada criam riscos, a única precaução possível é uma ordem social focada na pessoa, fonte de liberdade política, económica e social. Humildemente volto a citar Friedrich Hayek a fim de recomendar esta reflexão “aos socialistas de todos os partidos”.