Escrever não é forçosamente um prazer, longe disso. Mas ler, se tivermos juízo e cuidado, arrisca-se a sê-lo quase sempre. O truque está em conseguir arranjar uma profissão que nos garanta o máximo de tempo para ler. Não quero insinuar que seja o tipo com mais boa fortuna deste velho planeta, mas por acaso esse privilégio tenho-o, e não sei o que seria de mim se não o tivesse.

Isto para dizer que, por razões profissionais, passei uma boa parte dos últimos meses a ler Darwin e comentários à obra de Darwin. Sem surpresa, como em qualquer grande pensador, encontramos nele, muitas vezes sob a forma de aporias, de dificuldades difíceis de resolver, várias das questões fundamentais que se repetem ao longo da história do pensamento ocidental, e, como em todos os grandes autores, formuladas de um modo novo que as recria quase como do princípio.

Em primeiro lugar, é claro, a questão “O que é pensar?”, sob a forma do estabelecimento das premissas para uma interrogação sobre a evolução da mente e das razões dessa evolução. Depois, um fascinante e muito problemático cruzamento dos modos de pensar a sociedade e a natureza, que coloca questões sempre actuais. Senão vejamos. Darwin recupera, para pensar o processo da selecção natural, a expressão que um economista, Malthus, utilizou para pensar a sociedade humana: “luta perpétua”. E a própria doutrina de Darwin servirá, num movimento inverso, para pensar a sociedade. Herbert Spencer (que inventou a fórmula “sobrevivência dos mais aptos”), mas também Marx e H. G. Wells, entre outros, recorrerão, em grau diverso de acerto e legitimidade, a argumentos de Darwin para alicerçar, ou apoiar, as suas concepções da sociedade. A forma como o pensamento da sociedade se distingue e se confunde com o pensamento da natureza é algo que a filosofia discute desde os gregos.

E, é claro, encontramos em Darwin sob uma nova forma as tradicionais dificuldades que a filosofia da ciência sempre encontrou quando se trata de justificar as hipóteses. Dificuldades tão grandes no caso de Darwin que os mais eminentes filósofos da ciência seus contemporâneos (William Whewell, John Herschel, Stuart Mill), com várias boas razões, fizeram questão de sublinhar. Mesmo hoje em dia as críticas fazem-se sentir. Se a “árvore da vida” da Origem das espécies, isto é, a descendência com modificação, a evolução propriamente dita, é pacífica nas sínteses contemporâneas, a operação que aos olhos de Darwin a permite, a selecção natural, continua problemática do ponto de vista explicativo. Para nos ficarmos apenas pelos nomes mais conhecidos, Stephen Jay Gould (seguindo um caminho que o próprio Darwin inciou) recusou-a como explicação única, contra autores como Richard Dawkins ou Daniel C. Dennett.

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Darwin ocupa-se igualmente de um outro objecto tradicional do pensamento filosófico: a beleza. Não tanto, é verdade, como outro naturalista cujos livros o acompanharam na célebre viagem do Beagle, Alexander von Humboldt, um admirador confesso, de resto, de Os amores das plantas, do avô de Darwin, Erasmus Darwin. Mas, mesmo que o tema da beleza não seja tão fundamental em Darwin como em Humboldt, A descendência do homem contém, a propósito da seleção sexual, ínumeros apontamentos sobre a origem do nosso sentimento de beleza, sobre os quais alguma estética contemporânea procura reflectir. E a importância da estética em Darwin não se encontra unicamente aí. Várias descrições de paisagens que lemos em Darwin reenviam de forma clara a conceitos tradicionais do pensamento estético, como o belo e o sublime, reflectindo por vezes explicitamente os ensinamentos do pintor e teórico da pintura Joshua Reynolds.

Resta o terceiro grande objecto do pensamento filosófico: a ética, a política, a sociedade, a liberdade. Aí, como notei no princípio, Darwin é problemático, e a descendência de Darwin mais problemática ainda. Um pensamento da natureza que sob certos aspectos se inspira num pensamento da sociedade (por mais que a influência de Malthus em Darwin seja susceptível de discussão) gera um pensamento da sociedade que se apoia no pensamento da natureza. Darwin foi quase sempre moderado e céptico no capítulo, convém notar. Mas todos sabemos que poderosas correntes, como a eugenista, encontraram na doutrina (problemática, repito) da selecção natural uma inspiração maior. Os Estados Unidos por algum tempo renderam-se-lhe. A Inglaterra, apesar de alguns seus proponentes entusiastas como Wells, recusou-a. A Alemanha nazi, é o exemplo mais notório, aplicou o eugenismo de forma sistemática. É de elementar justiça sublinhar que o cristianismo (católico e protestante) se lhe opôs fortemente.

A leitura de Darwin só faz bem. E as cartas e os esboços autobiográficos mostram uma personalidade infinitamente amável. Mas é útil voltar às aporias, às dificuldades, resultantes do cruzamento do pensamento da sociedade e do pensamento da natureza. Mais do que os problemas explicativos colocados pelo mecanismo da selecção natural, é a exportação de uma teoria sobre os fenómenos biológicos, por mais que ela use certos conceitos oriundos da teoria da sociedade (Malthus), para uma explicação dos fenómenos sociais que suscita reticências. De uma certa forma, Stephen Jay Gould, um seu crítico, está condenado a ter razão contra Edward O. Wilson, Dawkins ou Dennett. A sociedade é uma criação humana que adopta múltiplas formas e em que o horror, a beleza e o sublime convivem. Pretender ver nela unicamente uma expressão da natureza não é apenas, mesmo que inconscientemente, abrir caminho à justificação da crueldade. É um erro do entendimento. Por isso mesmo a discussão sobre a justiça e sobre qual a mais valiosa maneira de vivermos em comum é uma discussão que faz todo o sentido, de Platão e Aristóteles aos nossos dias. E é algo de radicalmente distinto da explicação da natureza.