Desligo imediatamente a televisão quando perco. Não sei como é consigo. Conheço do outro tipo: dos que se oferecem em sacrifício, como animais antigos aos deuses, vagueando toda a noite pela casa como espectros, enquanto a televisão transmite todos os flash-interviews, conferências de imprensa, comentários e debates do mundo alusivos à nossa derrota. O cérebro simplesmente não mo permite. Nem ouve o derradeiro apito até ao fim. Começa o pi e já acaba em pum. Botão vermelho. Off. Chamem-lhe mau perder; eu digo que é instinto de autopreservação. A vida já é dura que chegue. Não preciso do Rui Santos a escarafunchar-me na ferida.

O problema é que, nos últimos anos, estendi a prática à política. Gente que votava em ex-presidiários, nos colegas dos ex-presidiários, direitas que querem ser esquerdas, esquerdas radicais a exigirem tolerância de ponto para ir ver o Papa a Fátima. Uma pessoa já vai tendo idade para não ter paciência. Lá fora, são os Podemos e as Le Pens, os Farages e os Salvinis, os Orbáns e os Trumps, os Putins, os Erdogans e os Assads, o massacre contínuo na Síria, sociedades humanistas a virarem costas a gente que morre afogada aos pés delas, os fanáticos religiosos de pacote, os nacionalismos, os extremismos, os saudosismos de paraísos que nunca existiram, os machos alfa peitando-se no pátio, as virgens ofendidas a ameaçarem o fim da liberdade em nome da liberdade. O comboio a ir em direcção à parede e nós a percebermos que já não temos a menor hipótese de o desviar e que, portanto, a única coisa a fazer é saltar e procurar o sítio onde chegue o mínimo de estilhaços possível quando se der a pancada.

A vitória de Bolsonaro? Não vi. A televisão quase não foi ligada nesse dia. Lá em casa, ouviu-se música, de Pulp a Tchaikosvki. Leu-se, escreveu-se e foi-se passear ao jardim, ao fundo da rua. Autopreservação.

Até que, segunda de manhã, se deu o click. Um senhor (português), num daqueles fóruns na rádio, rejubilava com o resultado das eleições no Brasil e dizia: “é para aprenderem!”. Não sei bem quem, mas a coisa ia investida dum tom geral: era “para aprenderem”. Talvez os adversários, os jornalistas, os ouvintes, o país, os países em geral – o mundo. E, de repente, fazendo a torrada matinal, a rádio a ir para anúncios a medicamentos para a azia e a roupa molhada no estendal por causa da chuva da noite, vi a luz: Bolsonaro não era um projecto, era um castigo. Não era uma escolha, era uma lição. Não era o fim, era uma possibilidade. O Brasil não votou Bolsonaro; o Brasil disse: “Ah, é? Então, tomem lá o Bolsonaro!” Que “é para aprenderem”.

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Bolsonaro, Trump, Le Pen, Salvini, não são culpa dos eleitores nem das redes sociais. As pessoas não ficaram subitamente mais estúpidas do que eram. Quando votaram em Lula, Obama, Renzi, Hollande, eram esclarecidas, soberanas, livres e, de repente, deixaram de ser? E também não são culpa das redes sociais, que apenas elevam à quinta potência o antiquíssimo jogo das campanhas eleitorais, da mentira, do boato, da falsa promessa, de se falar aos sectores mais vulneráveis do eleitorado, de se adequar a mensagem ao eleitorado que se tem. Bolsonaro, Trump, Le Pen, Salvini, são culpa, fundamentalmente, dos políticos.

Os populistas não têm ganho democraticamente eleições com o voto de maiorias nazis que viviam por aí disfarçadas de pacatos contribuintes. Têm ganho com o voto de muita gente, gente diferente, incluindo muita gente profundamente desiludida com a classe política.

Surgem com a capacidade de fazer crer que, por muitos defeitos que tenham, dizem as verdades. Que não jogam o velho jogo político do faz-de-conta hipócrita. Que vêm para dar o murro na mesa. Dizer que já chega.  Que acabou a farsa. As bandeiras que agitam – se é mais contra os imigrantes, os índios, as mulheres, os árabes, os mexicanos, os gays – depende do “inimigo” que esteja mais à mão – faz parte do show de se fazerem passar por “não políticos”, porque não falam o “politicamente correcto”, porque “dizem o que pensam”.

A promessa é que é sempre a mesma: mudança, que é a palavra que todos os eleitorados procuram em todas as eleições. A palavra que todos os grandes líderes políticos do passado usaram. A palavra que as oposições de esquerda agitaram contra os governos de direita e que as oposições de direita agitaram contra os governos de esquerda, e que os populistas agitam agora contra toda a política, porque a esquerda e a direita conseguiram convencer quase toda a gente de que são palavras vazias e que, por dentro, é tudo igual.

As grandes democracias são recentes no mundo. Em muitos casos, não têm mais do que algumas décadas – ainda nem sequer chegaram a todo o globo. E o que milhares e milhares de políticos em todo o mundo conseguiram, em apenas algumas décadas dessa extraordinária experiência, foi atraiçoar a confiança que milhões de pessoas depositaram neles. Foi que se criasse a percepção generalizada de que os políticos mentem. Que os políticos não cumprem o que prometem. Que os políticos dizem o que for preciso para serem eleitos e para depois se manterem no poder. Que fazem negócios por fora. Que sucumbem aos poderosos. Que, na pior das hipóteses, são corruptos e, na menos má, indiferentes. Que, ainda por cima, muito dificilmente serão alguma vez julgados e condenados pelos crimes que fizerem. E que são todos iguais.

E assim chegámos aonde estamos hoje, por exemplo, em Portugal: reduzidos a escolher para líderes pessoas em quem não confiaríamos para comprar um carro usado. Resignados a que o melhor a que podemos aspirar é a um “rouba, mas faz”. A aclamarmos como pequeno buda a rara aparição de um político aparentemente honesto, como se a honestidade fosse algo de extraordinário e não o mínimo exigível. Já não pedimos grandes líderes, já não pedimos políticos carismáticos, visionários, brilhantes, geniais, corajosos – já só pedimos que sejam sérios, que é mais ou menos a mesma coisa que pedir a um piloto de Fórmula 1 que tenha carta de condução. O risco de nos entregarmos ao primeiro Bolsonaro convincente que cruze a porta aumenta de dia para dia.

Então, como pode Bolsonaro ainda salvar o mundo? Segue a teoria.

As pessoas riram-se de Trump nas Nações Unidas. Mas ainda se riram. E ainda havia Nações Unidas. Lamentavelmente, não é difícil imaginar pior. O Brasil, os Estados Unidos, o mundo, vão sofrer. Mas, com alguma sorte, Trump e Bolsonaro ainda não são o colapso; são o susto que nos faz mudar de vida. São a última oportunidade de os partidos tradicionais, dos líderes e classes políticas como os conhecemos até aqui, arrepiarem caminho – ou condenarem-se a eles à extinção e às populações a um calvário doloroso.

Por enquanto, estes líderes ainda são democraticamente eleitos e podem ser democraticamente afastados. Enquanto forem as redes sociais a pô-los no poder e não as armas ou a ditadura ou a censura, estamos bem. Políticos, partidos, reconquistem a confiança dos eleitorados. O que as pessoas procuram não é um ditador; é apenas a verdade.

Por cá, acabe-se com os amigos generosos, as heranças maternas e os submarinos, as penas suspensas e os resgates sem fundo aos bancos, o escoar directo de todos os buracos privados para o poço da dívida pública para onde condenámos gerações e gerações que ainda nem nasceram. O aumento contínuo do fosso entre ricos e pobres, os principiantes que já vendem cargos e tachos nas juntas, os vereadores moralistas e as casas para os turistas, os artistas, os ilusionistas, os clientelismos, as famílias todas empregadas pelo erário público, o fim das empresas públicas para se pagar ainda mais a “reguladores” que não regulam,  as despesas de deslocação, a casinha inventada na província, a pequenez de tudo isto, a desonra, a decadência imoral, o atrevimento de se acharem mais espertos do que o “povo” com que enchem a boca nos discursos das épocas lembradas. Ou esperem pela pancada.

A esquerda lírica, moralista, que fecha os olhos aos seus próprios crimes; a direita desesperada que corre para os braços do primeiro pistoleiro que prometa recuperar a moral e os bons costumes.

Grandes impérios e monarquias não caíram pela superioridade do invasor, mas pela sua própria decadência. Ainda estamos perfeitamente a tempo de evitar que as democracias modernas tenham o mesmo fim. Ainda não vamos desligar a televisão. O jogo ainda não acabou. Mas se nós, (e)leitores, ficarmos pelo título de crónicas como esta, saltando directamente para as nossas conclusões sem sequer ler os textos, então o combate já está perdido.