Anos 90, finais de anos 90, não consigo precisar bem o ano, mas o dia, esse, lembro-me bem. As memórias sensitivas são sempre mais persistentes. Era uma tarde de agosto, um dia quente, tórrido, seco. Deixava a terra enrugada, sulcada de montes e vales profundos do interior algarvio para entrar nas planícies alentejanas. A paisagem estendia-se à minha frente como um quadro que ali tinha encontrado espaço para se espraiar. Tinha fugido, como habitualmente, às vias de maior tráfego e tinha optado por estradas secundárias para assim me soltar naquela paisagem a perder de vista.

Mas algo não batia certo na memória que tinha dessa vastidão. A paisagem estava ressequida, quase não havia vegetação. As represas apresentavam vestígios de água, a vida parecia fixada numa película, numa quietude que entrava pelas narinas e enchia os pulmões. Mas sentia-me inquieto, algo havia na paisagem que não batia certo. Eram os montados de azinho e sobreiro. Eram terrenos com cadáveres de árvores a perder de vista. Eram fantasmas, eram negativos de árvores com “raízes” onde antes havia copas. Eram os galhos apontados ao céu como que a suplicar por clemência e um pouco de água.

Há um conceito por entre os arquitetos (o da paisagem inalterada), segundo o qual, sem intervenção humana direta, a paisagem tende a manter-se inalterada durante a nossa vida. Mas ali, bem à vista, a mudança era evidente. O equilíbrio saudável e precário da paisagem alentejana estava a alterar-se no nosso turno, no meu turno. E isso inquietou-me, ainda que na altura ficasse sem compreender bem o significado daquilo a que assistia.

Apesar de residir no Norte de Portugal, as minhas raízes são da Beira Baixa, onde a minha avó Joaquina sempre me incutiu o respeito pela natureza e pela escassez dos recursos. Assim, e talvez por causa da minha relação com a água, achei que aquela paisagem resultava de uma precipitação que já há alguns anos escasseava.

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A inquietação deu lugar a um desconforto persistente e desde então dei por mim bem mais atento às alterações da paisagem e uma desflorestação que não se restringia às regiões mais áridas. O que se passava?

Procurei respostas. Lembro-me, na altura, de ter enviado um mail para associações ambientais a dar nota da minha preocupação e a solicitar informações adicionais. Passei o calvário habitual da inscrição. Preenchi uma ficha, forneci todos os dados indicados, solicitei a palavra-chave, indiquei se aceitava publicidade, etc., e só depois do acessório coloquei a questão. Passados anos, aguardo a resposta, mas a publicidade, essa, é quase diária.

Estava imbuído da ideia romântica de essas organizações terem por objetivo divulgar as questões ambientais, incentivarem quem manifesta interesse e assim angariarem apoiantes à causa. Achava eu que tinham uma postura interventiva, eram ativos e recusavam caminhar resignadamente como “bovinos” para o “suicídio coletivo”. Como me enganava!

As respostas às minhas inquietações vieram-me de outras fontes. Assim, e à medida que fui lendo sobre o assunto, encontrei uma longa lista de responsáveis, que essencialmente atribuem a desflorestação à diminuição da atividade agrícola nos montados, à contaminação de solos e árvores por fungos que se disseminam, quer por pastorícia, quer por movimentação de solos.

Mas não fazia sentido. Muitas das encostas onde via os “cadáveres de árvores” eram tão íngremes, que seguramente nunca tinham tido intervenção humana direta. A hipótese de contaminação de solos também não parecia explicar o que via, pois tudo me sugeria que as árvores morriam pela copa.

Foi após ler Anthony Barnosky, End Game – Tipping Point for Planet Earth, publicado em 2015, que entendi algumas particularidades do problema. A desflorestação é uma realidade global que resulta direta ou indiretamente da atividade humana. O aumento médio da temperatura e a redução da precipitação, para além de favorecer os incêndios, resulta também num aumento das pragas de insetos desfolhadores.

E aqui estava parte da explicação que procurava. Com o aumento da temperatura média, redução de precipitação, invernos mais amenos e primaveras mais precoces, as larvas desses insetos deixaram de ter nas condições climatéricas o seu controlo natural. Livres de constrangimentos, podem vingar em maior número, e assim alterar a paisagem. Ali estava, bem à vista de todos, a causa da “alteração da paisagem” durante o nosso turno.

Como é óbvio, esta não é a única causa da desflorestação e, porventura, não será a mais relevante. Mas, independentemente das causas, a desflorestação é, no global, uma realidade que conhecemos, mas de que teimamos em não retirar ilações, apesar dos inúmeros estudos de organismos internacionais e artigos publicados em várias revistas científicas que apontam a Europa em geral e Portugal em particular como sendo uma das regiões do mundo de maior risco e uma das mais afetadas.

Sempre tive uma relação muito próxima com as árvores. Sempre me senti esmagado pelas suas formas, pela beleza dos seus contornos de firmeza e verticalidade. O fascínio que sinto ao contemplá-las só é comparável com a tristeza e revolta que me invade quando vejo a devastação a que são tão frequentemente sujeitas. Sinto-me como o avô Jerónimo, o avô de José Saramago “… aquele avô que antes de morrer se foi despedir das árvores …”.

Há alguns anos, quando me deslocava na A62, entre Salamanca e Vilar Formoso, à medida que me aproximava da fronteira, o céu de um azul límpido ia ficando cada vez mais cinzento, cada vez mais carregado. E não era temporal. Eram incêndios! Eram dezenas de fumarolas que se faziam anunciar a muitos de quilómetros de distância. A fronteira entre Portugal e Espanha não era uma linha imaginária. Havia uma diferença entre os territórios. Era possível traçar uma linha a separar Espanha de um Portugal vítima de um qualquer cataclismo.

Para o flagelo de incêndios, são habitualmente apontados fatores climatéricos, ou outros relacionados com a limpeza dos terrenos, a demografia e ocupação do território. Um conjunto de causas que imediatamente ali parecem inverosímeis. Ao transitar de Espanha para Portugal não há mudanças no clima nem se observa em Espanha essa limpeza de matas, nem na meseta ibérica espanhola há grande diferença demográfica. A única diferença, a significativa, era a existência de uma fronteira, uma linha imaginária, mas que se faz representar por realidades diferentes.

Recordo-me ainda dos incêndios de 2017, do incêndio de Pedrogão Grande. Não tinham passado mais do que algumas horas sobre essa calamidade e já alguém tinha encontrado a “árvore” onde o “relâmpago da trovoada seca” tinha caído e iniciado a tragédia. Como somos lestos nas justificações e com que facilidade aceitamos as patranhas que nos impingem!

No PORDATA podemos observar a área ardida de vários países europeus representada em percentagem por 100 mil quilómetros quadrados de área florestal. Entre 1991 e 2016 (anos com registo disponível) fomos quase sempre o país europeu com maior percentagem de área ardida por 100 mil quilómetros quadrados. Exceção para dois anos, em que ocupamos o segundo lugar, e outros dois em que estivemos em quarto e em quinto lugar. Nos 26 anos em que há registos, estivemos em primeiro lugar por 22 vezes e houve anos em que a percentagem da nossa área ardida era superior ao somatório das percentagens de área ardida dos restantes países europeus (16 vezes nos 26 anos de registos). Após 2016, não há registos comparativos, mas em 2017 todos sabemos o que aconteceu!

É-me difícil encontrar adjetivos para estes números. Escolhi para o título deste texto “De Desilusão em Desilusão” porque não consigo ter nenhum otimismo nas associações ambientais nem nos partidos políticos que colocam o ambiente como tema central dos seus programas, nem nos políticos que enchem a boca com palavras como “equilíbrio ambiental”, “sustentabilidade”, “economia verde”, etc., mas que não entendem que a floresta é a melhor forma para se “enterrar” o CO2 que vamos produzindo.

Uma postura de respeito para com a vida no planeta não é compatível com frases como “época de incêndios”, “mitigação de consequências”, nem com o que, infelizmente, vai sendo um negócio próspero, uma nova atividade económica, uma área de inúmeras oportunidades. Uma área de oportunidades que, enquanto se desenvolve e os seus atores prosperam, a floresta vai ficando cada vez mais frágil, cada vez mais pobre, com consequências para gerações atuais e futuras que me coíbo de relembrar. Para onde quer que se olhe é só desilusão que se vislumbra.

Nos anos 80, quando o problema da desflorestação começou a fazer-se notar, os intervenientes assinalaram o problema, atribuíram-no às alterações climáticas, mas nada fizeram para interromper o descalabro que se anunciava. Talvez não adivinhassem o que por aí vinha!

Com os incêndios a devastar boa parte do nosso território, em 2003, um ano particularmente grave, o XV Governo, cujo primeiro-ministro era o Dr. Durão Barroso, criou um fundo florestal em 1 de fevereiro de 2004, permanente, financiado com uma taxa sobre os combustíveis de 0,5 cêntimos em cada litro de gasolina e 0,25 cêntimos em litro de gasóleo. Estimava-se que este fundo acumulasse 30 milhões de euros em cada ano fiscal (510 milhões até à presente data).

O fundo existe. Numa consulta e da leitura dos relatórios de actividades, verificamos que o dinheiro tem sido gasto em prevenção, formação, formação de equipas de combate rápido a incêndios e outras iniciativas para alimentar a máquina. Eficácia destas medidas? Basta ver os dados da PORDATA!

E quanto à reflorestação, afinal, motivo para o qual o fundo foi criado?

Citando mais uma vez a PORDATA, dos dados disponíveis entre 1989 e 2016, Portugal perdeu 141.142 hectares de mato e floresta, não sendo percetível qual a área reflorestada, nem qual a área que efetivamente é ocupada por floresta digna desse nome.

Este aspeto é importante, pois quem circula pelo país de Norte a Sul, numa linha afastada 30 quilómetros da costa, vê um território que há algumas décadas era ocupado por floresta, para atualmente ser classificado como de floresta, mas preenchido por plantações de eucaliptos, mato rasteiro, esqueletos de árvores ou com figuras fantasmagóricas de árvores, que em vez de copa se apresentam como caretos num carnaval sem fim.

Talvez um dia consigamos superar este estado de desilusão. Talvez, quando acordarmos, seja tarde demais. Talvez sigamos as “pegadas” do Engº Xavier Viegas e nos resignemos a não ter esperança.