“O SNS, que este ano celebra 40 anos, que agora até tem uma nova lei de bases, merece todo o carinho e que seja a joia da coroa do investimento do PS na próxima legislatura.”. Quem o afirmou foi António Costa, no discurso de encerramento da Convenção Nacional do PS, a 20 de julho de 2019.

Esta frase do primeiro-ministro, que citei e com a qual o confrontei em debate na Assembleia da República no dia 22 de junho, representa bem o que é a governação socialista – em que os resultados das políticas teimam em contrariar a propaganda. E hoje, de prometida joia da coroa, o SNS continua a ser tratado como uma peça de bijuteria barata.

Nas últimas semanas, a situação em muitas urgências hospitalares de ginecologia e obstetrícia foi notícia pelos piores motivos. Como exemplos, o Hospital Garcia de Orta (HGO), em Almada – hospital de referência na área dos cuidados perinatais diferenciados, amigo dos bebés e o maior hospital do distrito de Setúbal – ou o Hospital de Braga – várias vezes considerado o melhor hospital do país -, que viram as suas urgências encerradas por falta de médicos para assegurar as escalas de serviço.

Poderia referir outros hospitais, porque o mesmo se passou (e passa) em outros pontos do país, mas prefiro focar-me numa unidade do SNS que, nestas últimas semanas, não surgiu nas notícias: o Hospital de Cascais. Não por acaso, mas é o último hospital do SNS em regime de Parceria Público-Privada (PPP). Sim, de Cascais não surgem notícias de encerramentos prolongados de urgências – como também aconteceu no HGO, em que a urgência noturna de pediatria esteve encerrada durante quase dois anos – de paralisação de serviços por greves, de demissões em bloco por falta de condições de trabalho ou, muito menos, de escusas de responsabilidade por parte de médicos e enfermeiros.

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O mesmo se passava, até há bem pouco tempo, com os hospitais de Braga, Loures e Vila Franca de Xira. À semelhança do que (ainda) acontece com o Hospital de Cascais, eram verdadeiras joias da coroa do SNS. Hoje em dia são as tais peças de bijuteria barata, que, na realidade, não são baratas e custam muito mais agora do que antes.

Estes três hospitais do SNS, durante o período em que tiveram uma gestão em regime de PPP, além de excelentes índices de produtividade e qualidade, tinham, consecutivamente, pareceres bastantes positivos do Tribunal de Contas que realçavam a eficiência e elogiavam a poupança que constituíam para os contribuintes, quando comparados aos hospitais do SNS geridos pelo Estado. Contudo, por pura obsessão ideológica desta ministra da Saúde e do Governo a que pertence e como contrapartida pelo apoio dos parceiros da geringonça, estes hospitais passaram para a esfera da gestão pública, com os resultados que estão à vista e, pior, com graves prejuízos para as pessoas que servem. E mais: por inércia resultante de uma imensa burocracia estatal e centralizadora, o SNS não adotou nenhuma das boas práticas de gestão das PPP.

O tema da gestão de recursos humanos é um dos mais evidentes. A contratação de profissionais de saúde não é ágil e descentralizada e as políticas salariais e de incentivos, necessárias para a retenção desses profissionais, não funcionam. O que impera são os ditames do Estado central, ao invés da necessidade e autonomia de cada hospital. Ainda neste âmbito, seria crítico perceber que racional de gestão é este que fez aumentar em 54% os gastos com os médicos tarefeiros nos governos PS entre 2015 e 2021. Este aumento, e o reforço de 700 milhões de euros para a Saúde neste Orçamento do Estado, confirma as últimas declarações do ministro das Finanças, que disse que o problema do SNS não é falta de dinheiro e que até seria mais fácil se fosse. A verdade é que, por mais dinheiro que se atire para o SNS, nos últimos anos, os indicadores de qualidade não estão a aumentar. Temos hoje mais de 1,4 milhões de pessoas sem médico de família, tempos de espera para consultas e cirurgias que continuam a ultrapassar todos os limites razoáveis, objetivos de cobertura não cumpridos em rastreios oncológicos e uma proporção cada vez maior de cirurgias oncológicas que ultrapassam os tempos máximos de resposta garantidos, para dar alguns exemplos.

É esta a “joia da coroa”? Desde que António Costa é primeiro-ministro, mais de um milhão de pessoas adquiriram um seguro de saúde. Ora, se as pessoas já pagam impostos, se já pagam muitos impostos, porque é que sentiram a necessidade de adquirir, adicionalmente, um seguro de saúde? Por muitas análises que possam ser feitas, este indicador deveria ser suficiente para se perceber que a confiança no SNS não está, propriamente, a aumentar.

Por muito que custe ao PS, ao PCP e ao BE, a expansão da saúde privada, de uma forma clara e simples, não resultou de ideias liberais, mas, sim, das políticas que aplicam e apoiam. Estes três partidos são os melhores agentes comerciais da saúde privada em Portugal. Sem a sua visão estatista ou o seu maniqueísmo contra o setor privado e o lucro, o SNS não teria chegado ao ponto a que chegou e a saúde privada não teria crescido como cresceu.

Graças às opções tomadas durante o período da geringonça, de forma paradoxal, o poder negocial passou todo para o lado dos privados. Quando os prestadores privados, perante o reforço das políticas de esquerda para o SNS, e de forma legítima, não se importaram de não continuar com as PPP que geriam, fizeram-no, também, porque estavam, simultaneamente, a aumentar a sua própria oferta. E ainda bem que o fizeram. Caso contrário, a rotura, hoje, no SNS, seria muito maior.

Os problemas do SNS estão, maioritariamente, relacionados com a falta de boas práticas de gestão, mas também, e a montante, com a ausência da utilização de toda a capacidade do sistema de saúde para atender à população. Não pode ser apenas perante momentos caóticos ou no seguimento de mais um plano de contingência que se recorre a todos os recursos do setor privado ou do setor social. Essa integração tem que existir desde sempre.

A atual crise nas urgências de obstetrícia é um bom exemplo para ilustrar os parágrafos anteriores. É perante este cenário de fragilidade que o Governo terá de se sentar à mesa das negociações com os sindicatos, para, no imediato, estancar a crise. E é perante este cenário de perda de poder negocial, perante sindicatos e prestadores de saúde dos setores privado e social, que o Governo terá de “reformar” o SNS.

Termino com uma nota de esperança, a de que é possível reformar o acesso à saúde. Basta, para isso, o Governo, o PS e a sua maioria absoluta quererem.

Enquanto liberal, proponho que usem os diagnósticos já existentes relativamente à estrutura do SNS, dos seus processos e dos seus resultados, para, com coragem e numa lógica concorrencial, contratarem com o setor privado e com o setor social, a prestação de cuidados médicos. Igualmente, que retomem os concursos para a gestão, em regime de PPP, de alguns hospitais públicos e que, nos hospitais que se mantiverem na gestão do Estado, garantam uma maior autonomia de gestão às suas administrações, bonificando e penalizando as equipas mediante o cumprimento de objetivos.

Por fim, que reformem os cuidados de saúde primários, com abertura a todos os modelos de gestão, de forma aumentar o acesso à saúde de proximidade e a reduzir a pressão nos ambientes hospitalares. Os portugueses precisam que exista a coragem de reformar todo o SNS, tornando-o num verdadeiro sistema de saúde integrado, com articulação entre todos os prestadores, e que lhes garantam um maior acesso à saúde e uma maior liberdade de escolha.

Isto, sim, será uma visão de “joia da coroa”, em oposição à atual visão de bijuteria barata.