Não perdem uma oportunidade, basta que a possam associar à direita. Apanharam-se com uma marcha contra a pobreza e largaram fogo ao pavio dos foguetes, para o festival de insultos, mentiras, calúnias, e os demais apetrechos litúrgicos indispensáveis à esquerda para celebrar a sua folgada virtude. Agitaram-se, desta vez, contra a vereadora Laurinda Alves por ter cometido a transgressão de pedir às Juntas de Freguesia para divulgarem o acontecimento que, de resto, não foi organizado por ela, nem pela Câmara de Lisboa, nem financiado com dinheiros públicos. O famoso email, que tanto alvoroçou as boas consciências, tinha apenas isto, um pedido de divulgação. E aí terminava a contribuição da Câmara. Marcava-se o Dia Internacional pela Erradicação da Pobreza, como há muitos anos acontece e acaba junto a uma lápide que existe no chão, ao fundo da Rua Augusta, quase a chegar ao Terreiro do Paço. Abundam notícias com fotografias dos anteriores governantes, e do vereador Manuel Grilo – representante do Bloco de Esquerda na Câmara de Fernando Medina – apresentando sem espinhas a edição de 2018.

O que é que mudou de 2018 para 2022? Mudou a Câmara e, portanto, mudou quem está no poder – ou, melhor dizendo, mudou quem está no governo da cidade. A mesma iniciativa, a mesma política – o mesmíssimo apoio – se vem da esquerda é “combate à pobreza”, se vem da direita passa a “caridadezinha”. O PS declara agora que “os mais vulneráveis devem ser protegidos, e não expostos”. Em função destas evidências, a marcha acabou cancelada.

A parte mais grave disto não é sequer a duplicidade de critérios. O pior é que, aos olhos da esquerda, as pessoas mais pobres têm uma capitis diminutio. Não podem desfilar nas marchas que entendem, nem sabem decidir sobre as suas próprias vidas. É preciso lembrar que esta marcha não era obrigatória. Ninguém ia amarrar estas pessoas para virem acorrentadas descer a avenida – desciam se elas quisessem. Quer isto dizer que, nós, a direita, somos quem faz a “caridadezinha”, mas a esquerda é quem decreta quais são as pessoas que têm ou não têm capacidade e direitos de cidadania. A esquerda vive a tentar encontrar pretextos, por todas as frestas que encontra, para pôr o Estado – ou seja, os próceres da esquerda – a decidir em vez das pessoas. E a circunstância de pobreza é uma maneira que a eles lhes pareceu impecável. Em parte por isso, à medida que se prolongam os governos da esquerda, a miséria passa de circunstância a condição, e de condição a natureza, e, a partir de um certo ponto, não há mais quem arranque a esquerda do poder.

E assim aconteceu. Se outra coisa mudou, de 2018 até hoje, foi que o PS governou mais quatro anos (no governo central; e mais três anos na Câmara de Lisboa). A situação económica do país piorou muitíssimo, como aumentou também muitíssimo o número de pessoas em situação de pobreza – os números são devastadores. E aumentou em função das políticas seguidas pela esquerda. Já ninguém tem dúvidas desta verdade simples, desconfio que já nem o próprio dr. Costa, que bem sabe os sarilhos em que se meteu, a ele e ao país, com o negócio político da geringonça e o governo determinado pelo Bloco e o PCP. Nenhuma das políticas de Costa teria sido possível sem a concordância destes dois atrasos de vida.

Escusa agora o PS de vir dar-se arezinhos de quem cuida da pobreza ou da dignidade das pessoas. Não cuida. Só se interessa por mandar, uma vez que os lugares de governo e poder são, por direito natural, da esquerda e dos chefes socialistas. O que aqui está nem é tanto uma demonstração de hipocrisia, apesar de ela existir e transpirar por todos os poros. O que estamos é perante um exercício de falta de imaginação e de uma espantosa falta de escrúpulos.

Uma semana depois, o PS mudou de ideias. Não sobre a marcha, mas sobre a dignidade das pessoas, cuja privacidade e miséria afinal devem ser expostas, e cujas circunstâncias pessoais afinal devem ser jogadas aos microfones da Assembleia Municipal. Desde que no tempo do PS, e nos termos do PS, ou seja, detalhadamente. Discutiam-se assuntos de habitação, e o PS apontou para os casos reais, revelou famílias, a situação da senhora, o número e a idade dos filhos. Deixou para o Bloco a nobre tarefa de lhes divulgar os nomes, um por um.

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