É triste, mas é verdade que nem sempre assistimos a comportamentos humanos dignos de qualidade humana. A crueldade é um assunto sério quando ultrapassa os limites do respeito pela vida e dignidade dos outros e do próprio. A crueldade é a produção do mal, de um mal radical (lembrando esta expressão de Derrida). O mal associa-se ao afeto do ódio. O ódio decorre da raiva. A raiva vem de um sentimento de incapacidade de aguentar a frustração de não possuir o que se quer. A frustração aparece pela incapacidade de tolerar, aceitar a realidade e esperar. Não se tolera pela dificuldade em integrar a diferença do outro/s. A falta de tolerância dá conta da predominância de um funcionamento centrado sobretudo num ponto de vista unilateral. E a postura absolutista de um ego egoísta dá conta da dificuldade em tecer uma boa troca recíproca de afetos, pensamentos, posturas. Dá conta da dificuldade em dar, reflete ausência de amor.

A partir da Segunda Guerra Mundial, muito foi escrito sobre a maldade. As atrocidades a que se assistiu levantaram a necessidade de compreender a dimensão da ética (des)humana. A massificação do exercício do mal por parte de uns aceitarem e executarem ordens escabrosas, sem qualquer questionamento, sobre outros, levou, por exemplo, ao ensaio de Hannah Arendt, filósofa judia de origem alemã, a desenvolver a partir daquilo que observou (e viveu até de perto) o conceito da banalidade do mal.

Psiquicamente, Freud falou-nos da pulsão de morte para explicar o ímpeto da destrutividade existente na condição humana. Existe uma pulsão de domínio no momento em que o bebé deseja apoderar-se de algo da mãe valendo aí operar o seu sadismo por forma a obter o seu prazer. Acontece que o bebé, pela inflexão da culpa, passa a virar esse ímpeto sádico para si. E, à medida que desenvolve a sua maturidade psíquica, larga estes movimentos primitivos sadomasoquistas. Passa a integrar a capacidade de empatia organizando-se relacionalmente (consigo e com os outros) de forma diferenciada e capaz de viver uma modulação afetiva equilibrada. Outra autora forte na história da psicanálise, Melaine Klein, psicanalista inglesa que também viveu a operação Blitz e trabalhou na cidade inglesa debaixo de fogo aéreo,  foi quem desenvolveu, entre os anos 40 e 50, a sua teoria em torno destes movimentos arcaicos da mente. Explicou muito bem como a inveja é uma expressão sádica de impulsos destrutivos desde o nascimento. Também o é a gratidão. Sendo a inveja e a gratidão sentimentos opostos, o bebé de facto vive-os na relação com o seio nutridor de forma alternada, até evoluir para um estado psicológico mais evoluído. As condições do ambiente externo e a qualidade da relação com as figuras parentais vão ajudar a sobressair mais a inveja ou os sentimentos de gratidão. A possibilidade de viver estilos de relações diferentes com as pessoas familiares, permitem à criança em desenvolvimento abrir-se a um mundo rico de afetos e maneiras de ser plurais.

Quando assistimos a comportamentos de ódio e crueldade, testemunhamos a ação de um funcionamento psíquico rudimentar que não conhece o meio termo e vive na oscilação de extremos de veneração por uns (ideias e ídolos “perfeitos”) versus ódio e abomínio por outros (degenerados e de “índole inferior”). Quem age uma maldade dirigida a outros com o argumento que os outros é que são maus, está a atribuir uma maldade aos outros que é sua. Esse “juízo” não passa do reflexo da projeção da maldade que existe dentro do corpo de pensamento que alberga uma mente sádica.

Pelos enunciados de Freud e Klein já referidos atrás, percebemos a importância de desenvolver ao longo da nossa vida relações emocionais sustentadas em afetos positivos e nutritivos. Devemos saber proteger-nos de relações tóxicas e maltratantes, pois tenhamos a consciência que por tal podemos correr o risco de infligir nos outros dinâmicas iguais a esses modelos (que sem querer podemos copiar). Tratar de pensar sobre as relações “mais doentes” é uma importante via de proteção e não repetição. A crueldade e o ódio levado ao extremo de violentar outros e a si é patológico. Se estes movimentos fazem parte da fase inicial  do desenvolvimento psíquico humano, ficar aí fixado num funcionamento sadomasoquista, inundado pela influência de sentimentos  de inveja, é sinónimo de perturbação mental no comportamento de um adulto.

Na relação com o grupo e connosco devemos fazer por não esquecer a dimensão da nossa ética pessoal e da noção de uma ética social. Manter um diálogo interior em torno dos valores humanos guiar-nos-á nas escolhas das nossas ações e julgamentos com os outros (e também, na verdade, connosco próprios) para não nos tornarmos (também nós!), em alguns momentos, vis e cruéis. E, mesmo sabendo-se que muitas vezes os atos de crueldade são manifestações de carências, zangas consequentes de sentimentos de privação e desamparo, nada legitima colmatar faltas maltratando outros, e/ou, em alguns casos, a si.

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