Se fôssemos um estudante universitário europeu em meados do século passado  –  coisa rara, mas útil para este exercício  - - o mais provável é que tivéssemos passado toda a nossa escolaridade crendo que um status em que o bem-estar do todo se mede pela soma das partes. Na segunda metade do séc. XX, vem Rawls sistematizar-nos a ideia de que talvez isso não faça tanto sentido assim, associando indelevelmente os conceitos de justiça (numa concepção ética) e de liberdade. No seu célebre exercício do véu da ignorância, conclui que um indivíduo tenderá a preferir nascer numa sociedade sem grandes desigualdades e,sobretudo, sem grande rigidez nos estratos sociais. O conceito, que triunfou em particular nas democracias liberais europeias, pode ser sintetizado no chavão “igualdade de oportunidades”. Numa frase, poder-se-á dizer que a igualdade de oportunidades implica que o contexto em que um indivíduo nasce não pode determinar a sua trajectória pessoal, profissional, ou intelectual  –  implica, por isso, a possibilidade de mobilidade social.

Hoje, a maioria dos estudantes universitários europeus já terá estudado, ainda que de uma forma superficial, os princípios básicos da acção do Estado e quase todos os europeus dirão defender uma sociedade com base na igualdade de oportunidades. Naturalmente, existirão diferenças significativas no que se entende por igualdade de oportunidades, oscilando entre visões puramente constitucionais/legalistas e visões mais sistémicas, que crêem ser impossível compatibilizar uma economia de mercado com verdadeira igualdade à partida  -  mas uma maioria significativa concordará, provavelmente, que o pressuposto de mobilidade social implica o acesso a alguns bens e serviços básicos, entre os quais a educação, a saúde, a habitação ou a justiça. É fácil compreender como o acesso limitado a uma destas dimensões afecta inegavelmente a fruição plena da cidadania prevista no nosso desenho de sociedade. No entanto, uma delas afecta em particular o acesso geral à igualdade de oportunidades, pela sua premência numa fase precoce da vida de qualquer cidadão  -  o acesso à educação. No debate sobre a igualdade de oportunidades através da educação existe de tudo um pouco, mesmo em Portugal  -  onde a diversidade ideológica representada na Assembleia da República nos propõe modelos tão diversos como os cheques-ensino e o fim dos exames nacionais  -,  mas é possível afirmar que todo o espectro democrático português defende maior igualdade de oportunidades e pretende melhorar o elevador social.

Por mais positivo que este consenso possa ser, será que o mesmo se traduziu numa melhoria do panorama de acesso à educação e, subsequentemente, em maior igualdade de oportunidades e evolução da mobilidade social durante as últimas décadas? O recente estudo “Portugal, Balanço Social 2020“, da autoria de Susana Peralta, Mariana Esteves e Bruno P. Carvalho, representa o mais actual e rigoroso diagnóstico nesta matéria para a realidade portuguesa.

Focando primeiro na imagem geral do país, a tendência das últimas décadas foi de melhoria na generalidade dos factores associados ao risco de pobreza e que dificultam a mobilidade social, embora ainda com largo espaço para melhorias. Os autores fazem referência a outros estudos (Carneiro, 2008 e Arnold & Farinha Rodrigues, 2015), que, para o período em consideração, assinalam a preponderância do nível de educação dos pais no acesso a oportunidades das crianças e jovens e, em última análise, na determinação da sua posição social  -  resultados que contrariam qualquer possível tese de que Portugal observa já uma situação de igualdade de oportunidades para a sua população. Ainda nesta análise macro, importa destacar os números apresentados pelos autores relativamente à exclusão digital  -  com 64% dos indivíduos mais pobres a indicarem a não utilização regular da internet em 2018, que compara com 7% entre os indivíduos mais ricos  -  e ao acesso ao ensino superior, o qual apenas 5,8% dos 25% mais pobres do país conseguem concluir (dados de 2019). Numa época em que a digitalização da economia é uma inevitabilidade e sendo o ensino superior o motor fundamental quer para a formação de trabalhadores capacitados, quer para a própria produção de inovação científica, estes são valores que demonstram o quão limitadas continuam a ser as hipóteses de ascensão social através da educação dos mais pobres no nosso país.

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Focando a nossa análise nas crianças do presente e no seu acesso à educação numa perspectiva integrada desde os seus primeiros anos de vida, os autores demonstram como há ainda muito por fazer. De acordo com dados de 2019, cerca de 75% das crianças provenientes do quartil de agregados familiares mais pobres não têm ainda acesso a creches (o que compara com cerca de 50% das crianças dentro do quartil com maiores rendimentos) e que, embora os valores de acesso ao pré-escolar (para crianças mais velhas, entre os 4 e 7 anos de idade) sejam melhores, praticamente metade das crianças mais pobres não frequenta esta fase de ensino  -  um valor mais de duas vezes superior ao correspondente no quartil de famílias com maiores rendimentos. Além de qualquer inequidade de acesso sistemática contrariar  por si só  qualquer princípio de igualdade de oportunidades, a contribuição negativa destes indicadores para o somatório final de potencial social e económico em Portugal é agravada pelo facto de, como destacado pelos autores, muitas vezes, a não frequência destas primeiras formas de ensino conduzir a falhas na formação e de potencial cognitivo das crianças, que fases de ensino posteriores poderão não conseguir colmatar.

Um panorama idêntico acaba por ser identificado para as crianças no ensino obrigatório: embora nesta fase não faça sentido medir a importância do rendimento familiar no acesso aos ciclos de ensino, os autores procuraram medir o impacto deste contexto no aproveitamento escolar. Se, para a fase pré-escolar, as crianças mais pobres apresentavam mais baixos níveis de acesso ao ensino, nesta fase posterior, as crianças que dispõem de apoio social escolar (nos escalões A e B) têm, em média, mais negativas que os alunos sem apoio nas formas de avaliação a nível nacional entre o ano letivo 2008/09 e 2017/18, com os alunos do 4º e 6º anos a terem, em média, quase 2,5 vezes mais negativas que os alunos sem apoio social. Em linha com os restantes resultados, também as notas positivas são transversalmente mais comuns em alunos sem apoio social.

Naturalmente, todas as fragilidades já enunciadas tornaram-se ainda mais evidentes com a pandemia e a subsequente necessidade de realização de alguma forma de ensino à distância. Seja através do já mencionado acesso ao computador e à internet, seja nas próprias condições de habitação que influenciam o potencial de aprendizagem em casa, a Covid-19 veio aumentar um fosso que já existia no acesso à educação.

Um gráfico particularmente assustador (figura 42 do relatório) apresentado pelos autores deste trabalho mostra que, naquela que foi talvez a principal estratégia implementada pelo Ministério da Educação para chegar a crianças de todo o país na primeira onda pandémica, a telescola foi sobretudo assistida pelas classes sociais com maiores rendimentos, tendo o aumento de audiências da RTP Memória (que albergou a transmissão destes conteúdos) mais que triplicado no mês de junho de 2020 entre a classe de maiores rendimentos, não tendo, ao mesmo tempo, sido observado qualquer aumento significativo de audiências entre a classe de rendimentos mais baixos em qualquer altura deste período.

Outros critérios, complementares ao rendimento das famílias, interferem igualmente na plena fruição de acesso à educação das crianças, como a estabilidade familiar ou o acompanhamento e atenção dedicada às crianças pelos encarregados de educação. Ainda assim, a primeira barreira objectiva no caminho para a igualdade de oportunidades continua a ser demasiadas vezes intransponível. O sonho da sociedade meritocrática é ainda uma miragem em Portugal. Num país em que tantas vezes identificamos a falta de um objectivo comum, parece claro que existem poucas métricas que mais facilmente uniriam a sociedade portuguesa do que a luta pela igualdade de oportunidades. É por isso necessário reconhecer devidamente o problema e, com a consciência dos problemas estruturais que o acesso à educação tem enfrentado nos últimos anos, estabelecer objectivos concretos, claros e atingíveis  -  se, por um lado, de pouco nos serve estabelecer objectivos que sabemos à partida que vamos falhar, por outro, é necessário explicar a cada momento como cada medida adicional irá afectar o objectivo maior de promoção do acesso à educação e, em última análise, da igualdade de oportunidades.