Prolifera nas opiniões em Portugal uma série de mal-entendidos, para não dizer falácias, quando se discute sobre a Eutanásia. O último exemplo – não o único – publicou-o o Observador, e tem por autor Pedro Afonso. Tentarei, de forma breve, contestar esses mal-entendidos.

1 A Eutanásia não é um problema médico, isto é, não é nem uma terapia, nem uma decisão terapêutica, nem – muito menos – uma decisão médica. Que a Ordem dos Médicos (e seus distintos antigos bastonários) seja contra é perfeitamente indiferente ao caso. A Eutanásia é a possibilidade que eu tenho de escolher a minha morte. Em Portugal nos projectos em discussão só está em causa isto: em situações de sofrimento e doenças terminais, poderei escolher, ou não, sobre o que me deve acontecer.

2 A decisão sobre legislar sobre a Eutanásia não foi feita à pressa. Basta lembrar que é a segunda vez que este tipo de legislação vai ao parlamento. Se para o Pedro Afonso é tão importante o CNEV, então por que não lembrar o ciclo de reflexões que o mesmo lançou e que alcançaram tantas cidades portuguesas? Mais, estando o debate há tanto tempo em cima da mesa por que não contribuíram os que acusam de pressa antes e não agora?

Não deixa, no entanto, de ter alguma razão nisto: o parlamento, a sociedade em geral, realmente reflectiu pouco sobre a Eutanásia e isso, em grande medida, porque a opinião publicada e o debate público em Portugal é extremamente débil. Mas a reflexão, ao contrário do que o Pedro Afonso gostaria, não se poderia centrar no sim ou não, mas na compreensão global do fenómeno o que implicaria uma legislação muito mais abrangente que a legislação agora em apreço (contemplando, por exemplo, directivas antecipadas de vontade, e situações limite que esta legislação bastante conservadora não contempla).

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3 A Eutanásia não é contra o cuidar.

Mas o Pedro Afonso vai mais longe, e terei de o citar com medo que não me acreditem:

“Já se percebeu que, para alguns partidos políticos, não há grande interesse no debate sobre a eutanásia. A lei tem de ser aprovada, custe o que custar. O mais importante é a «concretização» — com se fosse uma compulsão — de mais uma obsessão legislativa fraturante. Prefere-se a ação à reflexão ponderada, prefere-se «matar» em vez de «cuidar»”.

Sendo o Pedro Afonso doutorado vou fazer-lhe o obséquio de pensar que foi uma frase mal formulada. Em nenhum momento, por se defender a Eutanásia, poderíamos dizer, por exemplo, que o Pedro Afonso prefere o sofrimento a uma morte digna. Nenhuma das pessoas que defende uma legislação sobre a Eutanásia prescinde de cuidar, reflectir ponderadamente, e dar a mão àqueles que, perto de si, sofrem. Antes pelo contrário, acolhem essa tarefa com ponderada reflexão e sabem que cada um deve poder escolher como chegar ao fim da vida.

4 Misturar assuntos para confundir não é reflectir (técnica usada em todos os parágrafos do artigo). Permitir a Eutanásia não equivale a deixar de ter políticas públicas de prevenção do suicídio, até porque não se está a falar da mesma coisa. Nem ter políticas públicas de grande impacto nos cuidados paliativos. Nem uma coisa nem outra estão presentes na questão da Eutanásia. Os que a defendem, defendem também cuidados paliativos de excelência para todos os que deles precisem e esperamos que esta ou outra configuração política dê a esses cuidadores todos os meios para serem os melhores do mundo. A Eutanásia está para lá dessas questões e tem a ver com a opção da pessoa.

5 A opção da Eutanásia é da pessoa, não do estado, não do médico, não de um familiar. É com algum choque que vejo a comparação da Eutanásia num país democrático com as acções do regime Nazi. No debate público não vale tudo, e vou presumir, mais uma vez benevolamente, que Pedro Afonso se deixou levar pela retórica e não queria dizer exactamente aquilo. Mais, ao comparar esse momento da história com opções legítimas de estados democráticos em que pessoas (sejam elas crianças e pais, ou pessoas com demências) decidem que a Eutanásia é o modo mais digno de morrer. O uso de um exemplo de um doente com Alzheimer, descontextualizado, e sem uma verdadeira reflexão do que se passou naquele caso não parece condizer com o código deontológico a que o Pedro Afonso está obrigado. Não só por ter sido o primeiro caso em 18 anos como o estado ter levado o médico em questão a julgamento. Mas sejamos claros: não é isso que está em causa em Portugal.

O ponto que quis Pedro Afonso levantar, e que é relevante para a discussão, é a hipótese de a Eutanásia não ser decidida pelo doente. Sejamos claros: nesses casos estamos a falar de crime. Não de Eutanásia. A Eutanásia pressupõe uma escolha da pessoa, ponderada, informada, e partilhada com os seus mais próximos.

6 A Eutanásia não é uma maneira fácil de enfrentar o sofrimento. Salvo casos muito excepcionais e que têm outro tipo de motivações por detrás da escolha, escolher a eutanásia não é uma maneira fácil de enfrentar o sofrimento. Será, muito provavelmente, uma das decisões mais difíceis de tomar. É certo que há uma grande tradição de dolorismo em Portugal, muito por culpa da nossa tradição católica. Mas já há muito até a tradição católica se rebelou contra essa visão de aguentar o sofrimento, como se este fosse uma qualidade e não uma deficiência. Não, o sofrimento em nenhuma das suas formas é benéfico. Mas a maneira como o enfrentamos é uma escolha nossa.

7 A dignidade da vida humana não é posta em causa pela eutanásia. É por valorizarmos a dignidade da vida humana que queremos que cada um, nas situações impossíveis que são colocados, tenham a possibilidade de morrer conforme a sua melhor opção. Opção que quero para mim, e para todos.