Ainda há ano e meio considerava-se sagrada a livre circulação no espaço da UE. Qualquer cidadão Português podia ir e voltar a Copenhaga sem que lhe fosse pedida a exibição do cartão do cidadão. Não se faziam perguntas e nem sequer se pensava em respostas. Ir era tão natural quanto ficar. 18 meses foi o que precisámos para chegar à realidade oposta. Este é já o terceiro fim-de-semana consecutivo em que não se pode entrar ou sair da Área Metropolitana de Lisboa a não ser que se tenha justificação válida para o fazer ou um certificado digital de vacinação contra a Covid-19.

Atenção que não estou a pôr em causa o perigo da Covid-19 nem sequer os cuidados que devemos ter para evitar a doença. Não sou médico, epidemiologista ou virologista. O meu ponto é político; versa sobre as consequências políticas do que estamos a fazer. Há dias, Filipe Charters de Azevedo escreveu um artigo muito interessante no qual salientava, entre outros aspectos, isso mesmo: que a ciência não nos dá certezas, é um estudo que visa acender a luz no meio da escuridão, e que as decisões têm de ser tomadas, não por médicos, epidemiologistas ou virologistas, mas por políticos. As medidas que os governos tomam não são actos médicos, mas decisões políticas. Porque se devem basear na ciência, e porque é através do erro que a ciência avança, as decisões políticas têm que ser alteradas quando necessário e para que o possam ser é indispensável que se defina o que se quer e até onde se pode ir.

É em termos políticos que somos forçados a perguntar: quando é que as restrições vão acabar? Exigir que se tracem metas, objectivos. Até onde estamos dispostos a ir na limitação das liberdades? Vejamos o seguinte: a vacinação teve inicio em Dezembro. Nessa altura era ponto assente que no Verão a maioria da população estaria vacinada, a população de risco totalmente protegida e poderíamos começar o regresso à vida normal. Passaram seis meses e as restrições mantêm-se sem que haja alguma ideia sobre até onde podem ir. O desvario é tal que há 6 meses o importante era proteger a população de risco para que não morresse e agora visa-se impedir que os jovens estejam na rua entre as 23 horas e as 5 da manhã para que não contraiam uma doença que raramente os afecta. É verdade que há casos de risco que desconhecemos. Mas quantas pessoas morrem todos os dias nas estradas? Segundo a Autoridade Nacional da Segurança Rodoviária, em 2019 foram cerca de 472. Vamos impedir que se circule de automóvel? Hoje restringimos a saída ao fim-de-semana na Área Metropolitana de Lisboa. O governo vai decidir o mesmo no Verão para o Algarve? E quando a variante Delta se tornar dominante em todo o país, o governo vai restringir a circulação entre concelhos? Como não há objectivos definidos nem metas estabelecidas não temos qualquer ideia do que possa vir a acontecer. De hoje em diante qualquer liberdade pode ser restringida com o pretexto do combate à Covid-19.

O receio é legítimo porque as restrições impostas, que não apontam objectivos nem metas, acabam por ser totalmente aleatórias e não têm sustentabilidade real. Se a proibição de entrada e saída da AML ao fim-de-semana visa evitar o alastramento da variante Delta ao resto do país é essencial que se pergunte se a dita variante não se alastra entre segunda e sexta-feira. Os cafés, os restaurantes e as pastelarias fecham em Lisboa a partir das 15h30 ao fim-de-semana porquê? Só depois dessa hora e nesses dias é que se torna perigoso frequentá-los? Antes das 15h30 não há contágios? No interior dos cafés restaurantes e pastelarias só podem estar 4 pessoas por grupo. Porquê? Se estiverem 5 o risco é maior? E se um grupo tiver 3, o do lado não pode ter 5 para compensar? Bem sei que qualquer regra tem de estabelecer limites, mas o problema aqui é a regra ser aleatória. Estas são perguntas sem resposta porque as restrições impostas não têm qualquer base que as sustente. Podem existir mil e uma razões que expliquem por que motivo é proibido sair de uma região em certos dias e não noutros e porque os restaurantes devem estar fechados numas horas e não noutras. Nenhuma terá ligação directa e efectiva com o impedir a propagação do vírus.

Como não há qualquer base que sustente a decisão política que impõe as restrições, não temos  também a mínima garantia que as liberdades nos vão ser restituídas nem quando tal possa vir a acontecer. No Verão passado era impensável andar de máscara na rua; hoje ponderamos a sua obrigatoriedade nas praias. No Verão passado era inimaginável não circularmos livremente pelo país; hoje queremos saber o que precisamos para obter um certificado digital. Há seis meses bastava, para que as restrições fossem levantadas, que a população de risco fosse totalmente vacinada e a restante recebesse, pelo menos, uma primeira dose; hoje, aceitamos que a imunidade só surge duas semanas após a segunda dose e que mesmo assim temos de fazer quarentena se em caso de contacto com um infectado. Há um ano lamentávamo-nos por não haver uma lei que regulamentasse as restrições das liberdades em caso de pandemia; hoje encolhemos os ombros porque as restrições são inconstitucionais. Entretanto, as liberdades que considerávamos essenciais foram guardadas num canto à espera de melhores dias que, sem qualquer meta política estabelecida, não sabemos quando chegarão.

A degradação do regime que se quer livre e democrático está à vista. Muito provavelmente este vírus não vai desaparecer de repente. O mais certo é que dure anos ou até acabe por ficar. Se assim for, como é que vamos fazer? Vamos continuar a fazer de conta que a liberdade é um valor e um princípio estruturante do regime? Entretanto, e enquanto não nos decidimos, temos boas razões para temer que suceda com as restrições o que está acontecer com o vírus.

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