Em pequena sonhava ser médica, “tratar as pessoas” como costumava dizer. Os anos passaram e esse desejo permaneceu. Estudou com afinco, confirmou-se o seu talento e acabou o curso de Medicina com excelentes resultados. Os avós, orgulhosos, antecipavam um futuro promissor. Nas vésperas de escolher a especialidade, vimo-la mais pensativa. Deixara de se sentir atraída pela cirurgia cardio-toráxica ou por outras especialidades prestigiadas e surgira o interesse pelo diagnóstico, mais concretamente pela Infecciologia. Um professor na faculdade tinha-a marcado profundamente e despertado nela o interesse por essa especialidade. Havia uma única vaga no hospital desejado, obteve-a. No inicio pareceu-nos estranho uma tão boa aluna escolher uma especialidade menos concorrida, que nunca lhe permitiria trabalhar no sector privado nem ter consultório próprio. Mas evidentemente, apoiámo-la. Entregou-se de alma e coração ao trabalho. Talvez em excesso, mas o hospital não lhe dava tréguas e os “bancos” consumiam-lhe os nervos e as horas de descanso. Já arrastava dois anos de cansaço, quando em Março o Covid-19 lançou esta jovem interna para a linha da frente. Afinal a sua especialidade era a protagonista nesta batalha! De um dia para o outro, os pais e irmãos fomos obrigados a deixá-la sozinha no nosso apartamento e ir acampar noutra casa afim de evitar possíveis contágios. Uma vez por semana fazíamos-lhe as compras. Não podia ir ao supermercado, dar uma volta na rua, encontrar-se com amigos, nem andar em transportes públicos, por ser uma potencial “ameaça”. Persona non grata? Passou a viver exclusivamente para os doentes. Durante meses não a vimos. O telefone mantinha-nos em relação.

Soubemos da dedicação exemplar de muitos profissionais de saúde mas também vimos o lado esquerdo dos hospitais e a ineficácia do SNS. Não teve verão nem descanso. Certamente por ser jovem e sem filhos a prioridade era para outros. Não somente andava esgotada como também preocupada pela falta de medidas estratégicas para enfrentar o inverno que se avizinhava com um já previsível novo surto de contágio. Infelizmente o Governo pouco ou nada ia fazendo, para além de garantir que a vacina chegaria a tempo. As semanas decorriam cada vez mais exaustivas, urgências atrás de urgências, bancos atrás de bancos, noitadas em casa a estudar os casos dos doentes mais complicados num esforço por salvar aqueles que lhe eram confiados, na insegurança de nem sempre ter um chefe, no dia das urgências, a quem recorrer para as situações mais críticas. Horas intermináveis sem compensações financeiras, substituições de última hora repetidamente mais frequentes. Tornava-se cada semana mais evidente a escassez de profissionais de saúde e de camas para o crescente e avassalador número de doentes infectados. E em véspera das festas do Natal e Ano Novo, a medida do Governo atestava a sua total irresponsabilidade: relaxar o confinamento. Relaxar! Consequentemente confirmaram-se os piores prognósticos: urgências colapsadas, médicos exaustos, corredores de ambulâncias paradas à entrada dos hospitais, falta de vagas de internamento, novas enfermarias abertas sem médicos especializados, pessoas a morrer por incapacidade de resposta atempada. Mortes que poderiam ter sido evitadas, vidas humanas nem sempre priorizadas.

E a minha filha, tal como tantos outros profissionais de saúde, lá vai diariamente à luta, por amor à sua profissão, lutando contra um vírus que teima em matar, contornando as medidas desajustadas do SNS e as politicas irrealistas do nosso governo. Sacrificando a sua vida e a sua juventude como se de um cenário de guerra se tratasse.

Mas se de facto estamos numa guerra, então que os nossos governantes o assumam, reconheçam a rotura técnica do SNS e façam de tudo para salvar as vítimas desta guerra. Que o nosso Governo abandone as suas considerações ideológicas e corporativas e mobilize todos os meios existentes, públicos e privados. Não é possível tanta gente andar distraída (com as eleições?) enquanto tanta gente anda a morrer com novas infecções. Não é possível uma filha viver diariamente um pesadelo humano enquanto os seus irmãos fazem tranquilamente exames presenciais em salas universitárias apinhadas de alunos. Não é possível um irmão meu, infectado de covid-19, ser atendido imediatamente na urgência de um hospital privado enquanto no hospital público dessa mesma zona, nesse mesmo dia e hora, o tempo de atendimento ser de longas horas de espera. Não é possível! Não é aceitável!

Eu tenho um profundo orgulho na minha filha, mas vejo os seus olhos tão cansados e noto que nos seus lábios há muito não se vislumbra um sorriso pois a irresponsabilidade dos nossos governantes a impede de “tratar os doentes com a dignidade merecida”.

Ela não estudou Medicina para decidir quem vai morrer, mas sim para resolver como salvar a vida.

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