Depois, casaram. E não foram felizes para sempre. Será mais assim que as coisas se passam no amor. Ou será isso que os números acabam por dizer. Ao contrário do fim habitual de muitas histórias infantis em que o “E foram felizes para sempre” vai ao encontro do romance familiar que as crianças fazem sobre a relação de amor dos pais. “Depois, a mãe e o pai gostavam tanto um do outro que tu nasceste” acaba por ser o capítulo a seguir ao “e foram felizes para sempre”. Que vem a seguir ao “casamento” dos pais. Que sela, aos olhos delas, o patamar onde tudo começou: a mãe e o pai só se casaram porque eram namorados um do outro. E que continua, capítulos depois, com a presunção que as crianças acabam por fazer: “A seguir, eu nasci. E aí é que a mãe e o pai foram, ainda, muito mais felizes; para sempre”.

Nem só aos olhos das crianças o namoro vem depois do casamento. Para muitos de nós será, também, assim. Mas não devia… Vir depois do namoro quer dizer que o casamento acaba por ser o fim do namoro. Ora, eu acho que sempre que namoramos nos casamos mais um bocadinho. E mal nos desmazelamos com o namoro nos divorciamos. Hoje, dez centímetros. Amanhã, mais vinte. E, em suaves prestações, mais uma mão cheia de metros. Sem sequer ser preciso muito tempo para isso. Muitas vezes, com a ajuda dos filhos. Que acabam por ser talvez os maiores obstáculos (acidentais) ao namoro dos pais. Antes do trabalho. Das famílias de um e do outro. De algum amor antigo mal resolvido. E do crescimento dos dois, a velocidades diferentes. E que nunca se faz a par. O que talvez inquiete é que seja muito vulgar chegar-se ao lugar-comum de se considerar o amor pelos filhos a forma premium do amor. O que faz com que se subentenda que o amor pela mãe ou pelo pai dos filhos passa, com a parentalidade, para a “segundo liga” do amor. E o “foram felizes para sempre” corra o risco de, muito depressa, passar a ter os dias contados.

Não basta dizer que o amor dos pais entre si e que o amor que cada um deles tem pelos seus filhos são amores diferentes. E não são. Mas se, na melhor das hipóteses, com o tempo, aos olhos de muitos de nós, o amor dos pais um pelo o outro se fraterniza, o “para sempre” empalidece. Às vezes, escorrega para um “nem contigo, nem sem ti”. E a mãe e o pai passam de namorados a melhores amigos um do outro. Que é uma forma de reconhecerem que a uma relação como essa vai faltando encantamento. E admiração. O que acaba por ser uma maneira de se reconhecer que o namoro já terá tido melhores dias. Ou que se pode ter esfumado algures, por entre várias memórias, num passado recente.

É mais fácil divorciamo-nos do que casarmos! Casar exige muito tempo, muita dedicação, muita delicadeza, muito despojamento e muito carinho. Divorciarmo-nos acontece, ao contrário, num instantinho. Porque é que nos divorciamos mais vezes? Porque poupamos no namoro. Porque depois de nos casarmos parece que já não é preciso namorar. E, mal se repara, chega-se, quase de supetão, ao: “E depois casaram. E não foram felizes para sempre”.

Desencontramo-nos porque não nos damos nem tempo nem oportunidades para nos conheceremos melhor. Talvez, então, o primeiro erro duma relação amorosa, depois de a reconhecermos como “o nosso amor”, seja assumir que conhecemos (bem!) aquela pessoa. Que ela não tem segredos para nós. Nos seus pequenos trejeitos, nos seus medos ou nos seus desejos. Na verdade, é absurdo imaginar que a pessoa com quem vivemos é, nos mais íntimos dos pormenores, um livro aberto. Alguém sem sombras nem opacidades. Será por causa de desistirmos de conhecer o nosso amor, sempre duma forma melhor, que, na sequência dum divórcio, se chega, muitas vezes, ao patamar de se reconhecer que, afinal, “eu não conhecia… aquela pessoa”.

Nestas coisas do amor, torna-se cada vez mais banal que se fale das crises no casamento. E, a roçar o esotérico, que se atribua aos múltiplos de 7 os anos mais perigosos para um casamento. Aqueles onde chegarão as maiores crises. Afinal, o que é uma crise num casamento: perguntarmo-nos se aquela pessoa a quem dizemos “amo-te” várias vezes será, realmente, o amor da nossa vida? Mas não será indispensável que nos perguntemos – de forma incansável, quase – se aquela pessoa merece o nosso amor (e vice versa)? Ao reconhecermos uma crise no casamento, estamos a assumir, de forma clara, que “as coisas não estão bem”. Mas pressupõe, também, que colocamos sobre a relação uma dose de esperança nos recursos que ela será capaz de mobilizar para a ultrapassar essa crise.

Não é aceitável que a pessoa com quem repartimos a vida perca o charme e deixe de merecer a nossa admiração. Sobretudo quando ela nos toma como seguros e pressupõe que, em vez de ficar mais bonita, aceita, com naturalidade, que uma relação se atrofie e quase se “burocratize”’. Daí que me pareça que, a exemplo das crises na adolescência, as nossas crises pessoais, tal como as crises do nosso casamento, deviam ser bem mais frequentes. Não; não para que, com isso, ele desmorone mais depressa. Mas, pelo contrário, porque sem muitas perguntas – por vezes, duras e difíceis – duas pessoas não se acertam em relação aos seus sonhos, aos seus gestos, aos seus desejos e aos pequenos-nada que fazem parte do património duma relação. Num casamento, sem crises não há namoro. Porque são elas que desbravam a opacidade e abrem trilhos que tornam urgente o namoro. Fará, pois, sentido, que depois de um ano de “velocidade furiosa” um casal aguarde por uma “escapadinha” para pôr a conversa em dia sobre o seu namoro? Não!! Namorar muito de vez em quando é a forma mais fácil de vir ao de cima todo o “lixo” que varremos para baixo do tapete. Ou para nos divorciarmos, de forma fulgurante, de comum acordo.

Às vezes, imaginamos que a linguagem do amor é universal. E que em relação a ela não há como nos enganarmos. E não é verdade. Cada pessoa, em cada relação e a cada momento, tem a sua própria linguagem do amor. (Daí que, muito depressa, alguém que sentíamos conhecer muito bem pareça, quase sem se dar por isso, um bocadinho “estranho”). Namorar é criar, entre duas linguagem do amor, uma língua comum. Rica em traduções simultâneas. O que é tanto mais indispensável quanto mais duas pessoas se conhecem bem. Acontece que, depois dum período inicial onde duas pessoas fazem por se entender uma pela outra – daí as discussões dos namorados – perdemo-nos por entre as palavras que não entendemos. E pelo meio das palavras que fugimos de dizer. E a linguagem do amor entaramela-se. E, de mal-entendido em mal-entendido, o amor que nós damos faz-nos sentir mal retribuídos e mal-amados. Mesmo quando o nosso amor nos diz que nos ama, por mais que isso não corresponda à forma como nos sentimos bem amados por essa pessoa. Como se parecesse que terá passado a dizer as palavras erradas nas horas certas. Mal duas pessoas deixam de conversar, depois se sentirem mais ou menos reconhecidas uma pela outra, mais depressa desistem de construir uma linguagem comum, e se transformam em dois estranhos; profundamente familiares. Podem, até, insistir que as histórias infantis têm sempre um final feliz. Mas, da mesma forma como são levados ao engano quando associam a paixão a um estado de embriaguez, acabam (num instantinho…) por descobrir que, afinal, “E, depois casaram. Mas não foram felizes para sempre.”

Segundo a Pordata, em 1960 houve 1 divórcio por cada 100 casamentos. Em 1980, 8. Em 2000, 30. Em 2020, dois anos de pandemia podem ter pesado neste número, quase 92. (O que não quer dizer que são as pessoas que “hoje” se casam que mais facilmente se divorciam “amanhã”.) Continuo a entender que as pessoas só se divorciam porque acreditam que podem ser felizes. (Errar é humano; insistir num erro é diabólico. Não é assim que se diz?…) E, sendo assim, a crise do casamento, que estes números (aos olhos de alguns) revelará, pode ser um exercício de fé na felicidade. Mas pode, também, nalgumas circunstâncias, ser uma forma de se entender que ser feliz para sempre se faz sem crises. E começando “do zero”. Talvez haja mais divórcios porque haverá crises de menos no casamento. Por mim, talvez pudéssemos ser mais cuidadosos na “publicidade enganosa” que surge no fim de muitas histórias para as crianças. Que se chegue ao “Depois, casaram”, nada contra. Mas que se fique por “E foram felizes para sempre” será minimalista. Porque não se há-de ficar pelo: “E prometeram lutar, todos os dias, com toda a alma, para serem felizes, para sempre”?…

Tenho um amigo que  afirma, com uma resignação tocante, que há um longo hiato entre levantar-se e acordar. Tão longo quanto o tempo que a sua cabeça leva a fazer o download da alma. Ora, por mais que não pareça, um casamento é o processo pelo qual a cabeça e a alma (e duas pessoas) fazem o download uma da outra. Como talvez ele queira dizer, mais importante que nos levantarmos indispensável, mesmo, é acordar. E, com crises e tudo, talvez só quando duas pessoas se acordam uma à outra é que se casam. E só assim é que se arriscam a ser felizes. Para sempre!

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