A retirada americana do Afeganistão sugere todo o tipo de meditações sobre a política, a guerra e a natureza humana. Para os líderes europeus, o choque da tragédia foi apenas a continuação de um processo delineado sem grande respeito e consideração.

O anúncio de um novo plano de retirada, feito pelo presidente Biden em abril, surpreendeu os aliados, que se acharam insuficientemente consultados. A operação era vista como tendo sido uma ideia americana, um esforço maioritariamente americano e, no final, um conjunto de problemas decorrentes de soluções encontradas pela liderança americana, mas esperava-se cortesia. A perspetiva unilateral da situação é tão forte que só na terça-feira Joe Biden conversou com um líder europeu sobre o que se passou. Ainda assim, dividir o Afeganistão numa escala de investimento ignora o sacrifício dos aliados. Um pouco antes de os americanos fazerem o mesmo, a NATO retirou 7 mil soldados de outros países. Europeus morreram em combate, incluindo portugueses. No Reino Unido, o Daily Mail fez uma pergunta simples numa capa com a fotografia de um funeral militar: “Por que raio morreram?”

Reduzir a guerra à América funciona se a virmos à distância, mas tem problemas na prática. A situação no terreno envolve a NATO, envolve a União Europeia e envolve o Reino Unido. Os problemas de um governo talibã também. Para a Europa, acompanhar a invasão justificava-se pela necessidade de combater e derrotar o terrorismo. Essa preocupação mantém-se se depois da implosão do regime e convive agora com o receio de uma crise migratória.

Depois de 2016, com a narrativa que se criou para explicar o Brexit, a eleição de Donald Trump e a nova direita, os fluxos migratórios tornaram-se a primeira preocupação da política externa ocidental. O Afeganistão é exemplo dessa fragilidade. Na América há relatos de que a presidência está a dificultar a entrada de afegãos, mesmo os que trabalharam nas suas missões, com o propósito de evitar má imprensa antes das eleições intercalares do próximo ano. Na União Europeia o cálculo é semelhante e a prioridade estratégica é agora a criação de condições que minimizem o número de afegãos a tentar fugir do seu país. É assim que se percebe a rápida e determinada intervenção do presidente Macron e a declaração do Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros, Josep Borrell, sobre a necessidade de conversar com os talibãs.

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Mesmo com as preocupações migratórias, seria um erro legitimar o novo governo. A União Europeia precisa de repensar o medo que abertamente demonstra perante qualquer ameaça migratória. É uma fraqueza que o mundo já notou e está disposto a usar para obter vantagens. O presidente turco ameaça abrir fronteiras sempre que a política europeia o incomoda, a Bielorrússia já empurra (literalmente) imigrantes pela fronteira com a Lituânia e até Marrocos consegue incomodar o continente a partir de Ceuta. Há bons motivos para temer uma crise nas fronteiras e a maior delas tem a ver com a dificuldade de gerir a situação no local, de encontrar políticas que aliviem a pressão sem rejeitar o tratamento digno de quem procura asilo. Por ser uma fragilidade, era importante que fosse menos assumida em público e que se procurasse fazer melhor e mais rápido nos pontos de pressão.

Ainda que a evolução no Afeganistão não venha a provocar tensão nas fronteiras europeias, há contas por acertar com a América. Depois de quatro anos de conflito excessivo com a presidência de Donald Trump, a União Europeia foi demasiado intensa e precipitada no abraço a Joe Biden. Até agora, a expectativa de reciprocidade não se concretizou. Mantém-se uma guerra comercial, a impossibilidade de viajar e, no Afeganistão, houve uma terrível falta de consideração pelos interesses europeus. Este é o momento certo para a União arrefecer e reequilibrar a relação com os seus amigos americanos.

João Diogo Barbosa, jurista (@jdiogospbarbosa no Twitter), é um dos comentadores residentes do Café Europa na Rádio Observador, juntamente com Henrique Burnay, Madalena Meyer Resende e Bruno Cardoso Reis. O programa vai para o ar todas as segundas-feiras às 14h00 e às 22h00. 

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