Adriano, nome fictício, herda a casa que os seus pais tinham na aldeia. O Estado cobra-lhe imposto. Decide viver nela. Entretanto, vai pagando o imposto devido por ser proprietário. Como arranjou um emprego e não encontra comprador para a casa, decide ficar com ela. Adriano tem ainda uns terrenos perto da aldeia dos pais. Mal sabe onde ficam, não consegue retirar rendimento algum dessa propriedade. O Estado cobra-lhe imposto e exige-lhe que gaste parte do seu rendimento a tratar anualmente da limpeza.

Adriano vive numa cidade daquilo a que em Lisboa se chama «interior», de onde se desloca para trabalhar numa outra localidade. Para evitar más estradas nacionais, onde o Estado colocou uma placa assinalando «piso em mau estado», usa frequentemente a auto-estrada. Paga a portagem. Como vai de carro, o Estado cobra-lhe impostos pela aquisição do veículo, um imposto para que ele possa circular e um imposto sobre o gasóleo. Ouviu na televisão dizer que deve abandonar o seu carro a gasóleo porque está a destruir o planeta, ficou dias a fio a pensar como pode fazer 40 quilómetros diários de trotinete ou em transportes públicos que não existem, e decidiu ir viver para uma casa que tem num subúrbio lisboeta – um T2 de má construção, numa urbanização feita sem plano e ordenamento, a um passo de um bairro problemático, sem condições humanas algumas, e de onde sai uma criminalidade diária nas redondezas, nas ruas, nas escolas, e de que a polícia se vai queixando por não ter qualquer forma de ali implementar a lei e a ordem.

Como a tinha arrendada, para a rentabilizar de alguma forma, pagando ao Estado o devido imposto pelo registo do contrato e o devido imposto sobre o rendimento que dali retirava, decidiu não renovar o contrato com o seu inquilino, planeando a mudança para a data em que aquele entregasse a casa. O inquilino não entregou a casa. A mudança de Adriano ficou adiada porque teve de esperar um ano pelo fim de um processo judicial e respectiva execução, pagando sempre as taxas devidas ao Estado.

Adriano regressa finalmente a Lisboa e decide vender a casa da aldeia. O Estado cobra-lhe as mais valias pela venda da casa. As Finanças criam-lhe um problema com a entrega do modelo de imposto sobre IRS. Adriano faz o que lhe é devido: paga primeiro e reclama judicialmente depois. Espera quinze anos por uma decisão definitiva.

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Adriano vai e vem todos os dias de casa para o centro de Lisboa, onde trabalha. Para evitar o trânsito diário que o impede de chegar a horas, recorre aos transportes públicos, boa parte do tempo em greve ou com problemas técnicos. Quando funcionam bem, utiliza o comboio para a sua sauna diária, já que não tem ar condicionado e segue todos os dias em sobrelotação.

O salário não sobe. Mas Adriano paga a prestação ao banco, paga a água, paga o gás, paga a luz, paga o telefone, paga o passe, paga o condomínio, paga o supermercado cada vez mais caro, tudo com os devidos impostos a favor do Estado.

Para evitar mais despesas, Adriano coloca os dois filhos na escola pública, que paga com os seus impostos. Teve durante algum tempo a ilusão de poder oferecer aos filhos uma educação variada, fazia questão de lhes dar formação bilingue. Tinha ouvido dizer a uma secretária de Estado da Educação que combateu os contratos de associação que tinha os filhos na Escola Alemã, e Adriano gostava de fazer o mesmo. Como não tem rendimento suficiente, prescinde dessa hipótese. Na escola do Estado, como todos os anos há falta de professores e disciplinas que ficam coxas, paga a explicadores particulares. Quando as crianças eram pequenas, pagava a creche particular porque não havia pública. Ainda encontrou uma, mas só servia filhos de funcionários da autarquia.

Adriano vai ao centro de saúde levar o filho mais novo à vacinação obrigatória. Como não queria faltar ao trabalho, fartou-se de telefonar e de enviar e-mails para o centro de saúde, mas nunca ninguém lhe atendia as chamadas e nunca lhe responderam. Falta uma manhã ao emprego, vai ao centro de saúde tratar da vacina. Aproveita e pergunta se tem médico de família. Não tem. Pergunta como pode fazer se quiser uma consulta. Dizem-lhe que deve ir para a porta do centro de saúde de madrugada, esperar por uma senha, esperar um dia inteiro para que o chamem ou, se quiser mais certezas, ir a uma urgência hospitalar e esperar o tempo que for preciso para alguém o ver. Adriano paga o serviço nacional de saúde com impostos, mas para não correr riscos abdica de mais uma parte do seu rendimento e contrata um seguro de saúde.

Adriano perdeu a esperança, mas durante alguns anos teve a ilusão de que podia oferecer aos seus filhos uma vida melhor que a sua. Vai lendo nas notícias que o elevador social está parado. Os salários não crescem, a vida não melhora. Não sabe se vai ter reforma, sabe apenas que continua a pagar, com o fruto do seu trabalho, as pensões de quem as recebe hoje. Está há 20 anos a ouvir dizer que tem de apertar o cinto. Resigna-se.

Há em Portugal um muro a derrubar: aquele que se ergueu à volta das vidas dos Adrianos, um monstro colossal fundado em premissas ideológicas assentes num princípio de boas intenções, mas que vão demonstrando resultados ineficazes. Da saúde à educação, da segurança social às questões de soberania, da justiça à fiscalidade, do ordenamento do território à segurança, o país está de tal forma emaranhado numa teia confusa e predatória que talvez já nem dê por isso. Os problemas estruturais mantêm-se e agravaram-se nos últimos seis anos por opção política. E o Governo tem razão num ponto: a pandemia acentuou as dificuldades na saúde, especialmente por consequência da opção política errada de fechar o SNS aos privados e concentrar o sistema, durante dois anos, numa única doença. O PS já demonstrou que é incapaz de ter uma visão global e estrutural para o desenvolvimento económico e a organização eficiente do Estado Social.

Lamentavelmente, só o que abre telejornais é assunto, pelo que agora estamos concentrados nos problemas do SNS e terminaremos, com grande probabilidade, com o gradual desaparecimento do tema da esfera mediática, com ou sem a demissões. Mas nem a actual «crise» da saúde se resolverá com a demissão da tenebrosa ministra Temido, nem o resto dos problemas desapareceu. Um país em coma não se acorda com pensos rápidos. E esta maioria absoluta socialista já nem penso rápido consegue ser.