Há já algum tempo, vi um western (de Anthony Mann, creio) em que um casal de colonos chega ao lugar, à beira de um rio, onde se vai estabelecer. Contemplando a magnífica paisagem (os westerns de Mann são praticamente imbatíveis nisso), agradecem a Deus ter-lhes dado um lugar tão belo para viverem. Aposto que há centenas de westerns em que os mesmos propósitos são emitidos; como aposto que deve ser muito difícil encontrar frases dessas em filmes das últimas décadas.

Não é a menção a Deus em si que é o mais importante aqui: é o que ela exprime, E o que é que ela exprime? A ideia de uma liberdade e de uma felicidade permitidas pelo facto de a natureza estar ao nosso dispor, de ela existir para nós nela vivermos e dela usufruirmos. Não é difícil imaginar as razões pelas quais semelhantes pensamentos são anátema nos dias que correm. Com razões e sem elas, a natureza é vista como algo que deve ser preservado contra as nossas acções. A pura e simples boa consciência do casal de colonos, que era uma condição da sua felicidade, seria impossível hoje. A má consciência, a neurose e a má-fé tomaram conta de tudo. Nada pode ser celebrado que não seja a própria má consciência, nenhum outro objecto é suficientemente digno de elogios, e toda uma indústria “cultural” se aproveita desse magnífico nicho de mercado.

A cena do filme de Anthony Mann veio-me ao espírito por causa da controvérsia em torno da palavra “descobertas” no nome do novo museu de que se fala. A quase totalidade do que se escreveu sobre o nome do museu releva por inteiro deste culto da má consciência. Nada é inocente, tudo encobre algo de podre que deve ser trazido à luz e passar para primeiro plano.

A ideia de “descoberta” é, de resto, neste contexto, muito interessante. Aqui há uns anos, por razões profissionais, passei algum tempo a estudar o conceito de descoberta em vários domínios. Para simplificar: científicos, práticos e estéticos. Leitura puxa leitura, cheguei a vários textos sobre as descobertas portuguesas, na maior parte dos casos contemporâneos destas. Li-os com grande prazer. Sem grande surpresa, confesso, descobri neles os três aspectos que mencionei: científicos, práticos e estéticos. Não tenho qualquer pretensão a mais do que um conhecimento superficialíssimo das descobertas portuguesas, e estou muito consciente da profunda dimensão da minha ignorância no capítulo, mas duvido grandemente que se pudesse verificar a ausência de um qualquer destes elementos. Vou-me plagiar (abreviando muito) sem má consciência.

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Há uma paixão pelo conhecimento. “Saber a verdade” sobre terras desconhecidas, como escreve Gomes Eanes de Azurara na Crónica da Guiné, Cap. VII, é um objectivo fundamental das descobertas. As descobertas supõem teorias prévias (descobertas teóricas, por assim dizer), não se fazem “a acertar”. Como escreverá Pedro Nunes: “manifesto é que estes descobrimentos de costas, ilhas e terras firmes não se fizeram indo a acertar: mas partiam os nossos mareantes mui ensinados e providos de instrumentos e regras de astrologia e geografia, que são as coisas de que os cosmógrafos hão-de andar apercebidos. Levavam cartas mui particularmente rumadas, e não já as que os antigos usavam, que não tinham mais figurados que doze ventos, e navegavam sem agulha”.

O vocabulário é típico das ciências:  as descobertas são determinações. De facto, o vocabulário da determinação é omnipresente: identificar, reconhecer, baptizar, etc. E, obviamente, os instrumentos utilizados (quadrantes, astrolábios, etc.) são instrumentos de determinação. Explorar, observar e interpretar são actividades que se completam umas às outras. A primeira (por oposição à segunda) viagem à Índia é símbolo desse processo. Nos Lusíadas, Vasco da Gama é o emblema da determinação do indeterminado, do conhecimento, da descoberta da diversidade e da conquista do múltiplo, do “buscar no mundo novas partes”.

As cartas, os mapas elaborados como resultado das descobertas e seu meio de avanço, não se limitam a reflectir a progressiva determinação das ilhas e dos continentes. Elas são igualmente reveladoras do elemento estético das descobertas, e transportam para quem nelas não participou esse elemento estético. Escrevia o filósofo Fernando Gil: “O mapa avança para o olhar e apresenta-lhe as descobertas”; o Atlas Miller é dominado pela “ostensão, valor da evidência”. É como se os mapas condensassem em si, através da sua beleza própria, que proporciona um singular maravilhamento, o prazer estético da descoberta. Os mapas e as descrições. Pensemos nas maravilhosas descrições de D. João de Castro (a descrição do Nilo, por exemplo, no Roteiro do Mar Roxo) ou, mais evidentemente ainda, em Camões.

Por fim, a descoberta das navegações respeita também às acções dos homens por relação aos outros homens. A relação com o outro, o risco (o “incerto e incógnito perigo” de que fala o Velho do Restelo), a conquista, as razões políticas que presidem ao empreendimento (tão presentes no Esmeraldo de Situ Orbis de Duarte Pacheco Pereira: “Vossa Alteza mandou descobrir”, “por vosso mandado foi descoberto”, etc.). Os padrões não se enquadram apenas no contexto de uma determinação dos lugares: são também a expressão do poder político. Diogo Cão (com quem a prática se parece ter estabelecido), chegado ao rio Manicongo [Zaire], “pôs nele Padrão de pedra com armas e letras reais que denunciavam quem o mandava” (António Galvão, Tratado dos descobrimentos). É a segunda viagem à Índia – se tomarmos por modelo da sua interpretação a análise que dela fez Oliveira Martins, na História de Portugal – que melhor exemplifica o significado das descobertas no contexto político: “Não havia protestos agora, senão esperanças, cobiças, ambições. Não partiam à aventura; partiam à conquista do que tinham descoberto, e queriam trazer para Portugal, para casa. (…) Não há mais trevas no mar; consumou-se a grande conquista. Mas uma nova empresa se desenha agora: devorar o descoberto, digerir o mundo”. Tal é a dimensão mais precária da descoberta: o projecto esbarra com uma realidade que lhe escapa: a dominação política é equívoca, cruel e instável.

É claro que nenhum destes aspectos é, como se diz, bacteriologicamente puro. Eles interpenetram-se de múltiplas maneiras. Mas isso não acarreta de modo algum consigo que eles não sejam de direito distinguíveis. Ora, o que a conversa contemporânea sobre a palavra “descobertas” faz é exactamente negar a possibilidade dessa distinção. Mais: tal como para as celebrações de Salazar, é o aspecto político o único que verdadeiramente conta. Claro que, a isso os tempos obrigam, o sinal dessa importância é inverso. Se a descoberta como modo de conhecimento, e até como modo estético, não interessa, e o único aspecto a ter em conta é o modo político, é porque esse modo político serve para a criação da má consciência. O “Museu das descobertas” deveria, nesta óptica, ter antes por nome “Museu da má consciência”. Mas a inversão do sinal, e o esquecimento das outras dimensões, não mudam em nada a tristeza e o fanatismo dos propósitos.