Marcelo Rebelo de Sousa chapinha em virtude. António Costa respira virtude. A Iniciativa Liberal, o Bloco de Esquerda, o PAN e o Livre, que votaram contra a ida do Presidente ao Qatar, banham-se em virtude. E, mais genericamente, dezenas de frequentadores de redes sociais e de cafés transpiram virtude. Todos eles acordaram uma bela manhã e decidiram que a sua missão de vida (pelo menos durante o Mundial) seria a de combater valentemente o regime do Qatar.

Esta quinta-feira, o Presidente da República (depois de uma paragem no pouco democrático Egito para tirar selfies com as pirâmides) foi ao Qatar “evocar os Direitos Humanos”, como fez questão de comunicar à Nação numa nota emitida pelo Palácio de Belém. Citando o saudoso Eduardo Cabrita, podemos todos proclamar, em êxtase coletivo: “Seja bem-vindo ao combate pelos direitos humanos no Qatar”. Trata-se, de facto, de umas boas-vindas a este tema porque, há apenas um ano, Marcelo Rebelo de Sousa estava emocionadamente de mão dada com o regime de Doha. Em Julho de 2021, o Presidente da República foi um dos orgulhosos representantes de Portugal na cimeira da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa que se realizou em Luanda. Nessa reunião, a CPLP acolheu o Quatar no seu generoso seio, com a categoria de Observador Associado. Ora, segundo nos informa a CPLP no seu site oficial, “os Estados que pretendam adquirir a categoria de Observador Associado terão de partilhar os respectivos princípios orientadores, designadamente no que se refere à promoção das práticas democráticas, à boa governação e ao respeito dos direitos humanos”. Se é assim, e se de facto o Qatar conseguiu esse estatuto, então é porque a CPLP — onde se inclui Portugal e onde se inclui o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa — avaliou o regime de Doha e concluiu que ele “partilha os princípios orientadores” da Comunidade, “designadamente no que se refere à promoção das práticas democráticas, à boa governação e ao respeito dos direitos humanos”. Se o Estado português mudou de ideias — e, claramente, parece que mudou — então deve propôr a expulsão imediata do Qatar da CPLP, lançando o país num justo opróbio.

Outra personagem política que mudou de ideias foi António Costa. Há dias, o primeiro-ministro disse uma frase que rebentava de indignação: “O campeonato do mundo é lá e quando formos lá não vamos seguramente apoiar o regime do Qatar, a violação dos direitos humanos no Qatar e a discriminação das mulheres no Qatar”. É uma declaração que tem especial graça se nos lembrarmos que, em Maio de 2017, o mesmo primeiro-ministro António Costa foi “lá” e, dessa vez, estava muito entusiasmado com “o regime do Qatar” e muito pouco vocal no incómodo com “a violação dos direitos humanos no Qatar e a discriminação das mulheres no Qatar”. Nessa altura, pressuroso, o primeiro-ministro pediu ao Qatar que “aproveitasse as promissoras oportunidades de investimento”, em especial no turismo, na construção, nas ligações aéreas e (preparem-se) na aquisição de vistos Gold. Mais uma vez: se o Estado português mudou de ideias sobre a verdadeira natureza do Qatar, então deve recusar, com irrevogável repugnância, um cêntimo que seja de investimento vindo de “lá”.

Há duas coisas que incomodam em tudo isto. Uma é a evidente hipocrisia política de quem só critica agora o Qatar para tentar acompanhar a mais recente indignação dos guerreiros das redes sociais. A outra, pior, é que esta virtude do verbo fácil substitui-se ao verdadeiro trabalho, sério e difícil, de melhoria dos direitos humanos em locais pouco recomendáveis como o Qatar.

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Esse trabalho foi realmente feito — mas não por Marcelo Rebelo de Sousa ou António Costa. Foi feito, por exemplo, pela Organização Internacional do Trabalho. Em dois relatórios divulgados a 1 de novembro, a OIT explicou que, apesar de ainda haver muita coisa a fazer, as condições de trabalho no Qatar tiveram mudanças “substanciais” desde que o país foi escolhido para receber o Mundial de futebol, “melhorando a vida de centenas de milhares de trabalhadores”. Um exemplo: o Qatar passou a ser o primeiro país da região do Golfo a ter um salário mínimo único igual para todos os trabalhadores. Outro exemplo: os trabalhadores deixaram de precisar de autorização dos patrões para mudarem de emprego ou para saírem do país, apesar de ainda haver relatos de represálias. Mais um exemplo: foram implementadas regras de segurança e saúde no trabalho que, entre 2020 e 2022, reduziram em 77% os internamentos por “stress térmico”, provocado pela realização de trabalhos em horas de calor extremo.

Também a Amnistia Internacional fez um trabalho sério, e não apenas proclamatório, no Qatar. Como resultado de uma estratégia que misturou diálogo e pressão, o país ratificou, ainda que com reservas, dois importantes tratados de direitos humanos.

Obviamente, nada disto significa que o Qatar seja um paraíso na Terra, com anjos a tocar harpa e povos a cantarem hinos de felicidade. As perseguições, as desigualdades e as injustiças podem e devem ser denunciadas e combatidas. Mas não é isso que verdadeiramente nos tem ocupado nestes dias. Como se tem visto, é muito fácil os responsáveis políticos portugueses exibirem a sua imaculada virtude perante um país longínquo e distante como o Qatar. Mas quando, por exemplo, há uns anos, se exigia que houvesse resistência à entrada do dinheiro da cleptocracia angolana em Portugal, para evitar que a autocracia de “lá” diminuísse a democracia de cá, a indignação foi relativizada e os protestos foram silenciados. É aí que se traça a fronteira entre exibir virtude e ter mesmo virtude. A diferença entre uma coisa e a outra é muito grande e nós, como se vê, somos muito pequenos.