O Governo, para fechar o ano com chave de ouro, através da portaria n.º 337-C/2018 de 31 de dezembro, “tendo como premissa os possíveis ganhos em saúde associados aos tratamentos termais, pretende (-se) implementar um projeto-piloto, com a duração máxima de um ano” de comparticipação destes tratamentos nas termas portuguesas. Por favor notem que os “ganhos em saúde” são POSSÍVEIS, sem nenhuma quantificação do valor dessa possibilidade, nem de que ganhos são.

Nada tenho contra o termalismo e até sei ter assinado autorizações e licenciamentos de termas. Há uma competência de Hidrologia Médica dedicada a este tipo de tratamentos e há casos, como com outras intervenções não farmacológicas, de benefícios clínicos sem toxicidade importante. Há, todos reconhecem, ganhos importantes para o turismo e para a economia das localidades onde há termalismo. Logo, nada a obstar a esta portaria que vem repor uma situação que tinha sido vedada em agosto de 2011, por causa da crise económica e da aplicação do programa da Tróika, o tal que o PS ofereceu aos portugueses nesse ano. Havia escolhas para fazer e o termalismo, em função do peso das evidências disponíveis, foi sacrificado em termos de comparticipação.

Agora, “virada a página da austeridade”, é normal que voltemos a ter acesso a todo o tipo de intervenções terapêuticas disponíveis, desde as que poderão ter um benefício apenas “possível”, até às que têm benefício e segurança confirmada e demonstrada. O XXI Governo entendeu repor a comparticipação para os tratamentos em termas. Fez bem. Pena que tenha esperado pelo ano de eleições para fazer esta reposição. Enfim, compreende-se que era preciso esperar pelo aumento da dívida pública em mais uns milhares de milhões antes de avançar com mais esta reversão emblemática.

O que é desfaçatez, não há outro termo para caracterizar esta vergonha, é continuarmos a ter doentes com cancro sem acesso a medicamentos com eficácia e efetividade demonstrada – a eficácia refere-se a resultados em ensaios clínicos que já levaram à concessão de autorização de introdução no mercado para esses medicamentos e a efetividade é a demonstração, com dados de uso corrente, de que a eficácia persiste quando os medicamentos são usados fora do contexto de ensaio.

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Enquanto o Estado decide autorizar a comparticipação de intervenções com benefício “possível”, ou seja, ainda por demonstrar, não permite a comparticipação de tratamentos com resultados e segurança clínica amplamente demonstrada. Quantas das condições clínicas enumeradas na portaria como passíveis de serem tratadas em termas, com comparticipação do Estado, das vulvovaginites ao eczema, passando pela Anemia (?!) e doenças psiquiátricas (afinal quais?), são verdadeiramente tratáveis com águas das termas? Qual o grau de evidência? Que indicadores foram usados para medir a eficácia? Que tipo de ensaios foram publicados? O Sistema de Avaliação de Tecnologias de Saúde foi ouvido? Um ano, 12 meses, serão suficientes para avaliar os putativos benefícios clínicos? Vão efetuar-se ensaios clínicos nas termas nacionais? Ou o ano da experiência é só para dar até às eleições de outubro e depois logo se verá se ainda vale a pena gastar mais 600 mil euros? Não é muito, mas sempre daria para tratar alguns daqueles a quem o Estado está a negar as autorizações de utilização excecional. E há sempre a possibilidade de enviar doentes fazerem reabilitação nas termas, não tenho dúvidas, em vez de os fazerem esperar por vagas em unidades de cuidados continuados, a quem o Estado não paga o que deve. Enfim, são os custos escondidos do “virar a página da austeridade”.

Para os medicamentos oncológicos que ainda faltam há dados de sobrevivência livre de progressão e de sobrevivência global. Os doentes podem viver mais anos se forem tratados e morrem mais cedo se não receberem tratamento! Com que cara se escondem os governantes quando, em seu nome, não há autorizações para tratar quem mais beneficiaria de medicamentos que estão disponíveis no resto da Europa ou, em Portugal, para quem os pode pagar?

A nova Secretária de Estado da Saúde (SES), lesta a assinar este diploma que é um monumento à insensatez política, chegou a demitir-se de um cargo de direção que tinha no Hospital de Gaia, alegando que não tinha condições para trabalhar, quando o ministério era dirigido pelo Prof. Campos Fernandes. Sob o mandato da Dra. Marta Temido, já tendo a nossa SES as condições que lhe faltavam, sugerem aos médicos das doenças oncológicas que se demitam, ou que mandem os seus doentes para as termas?

Mais do que falta de vergonha, há desumanidade. Ao que se chega para tentar ganhar eleições.

Ex-ministro da Saúde